- Tomás… esta prenda é especial, muito especial...
O Tomás, esguio e de cabelo eriçado, lançou-lhe um ar intrigado. Uma prenda? Bem… prendas eram sempre bemvindas, mesmo que o dia não fosse de aniversário, Natal ou de qualquer outra celebração.
- Uma prenda? Para mim? Mas eu não faço anos…
Leo, o vendedor da loja de vídeo-jogos, piscou-lhe o olho.
- Eu sei que não fazes anos hoje… fazes a 17 de Fevereiro, julgas que eu não sei? Mas mesmo assim, esta prenda é para ti…
O Tomás, meio indeciso, lá olhou para a mãe, num meio pedido de autorização. Como esta sorrisse, lá esticou as mãos em direcção ao embrulho, comprido e estreito, que Leo lhe oferecia.
- Mãe… posso?
A mãe fez-lhe que sim com a cabeça. Leo era um velho amigo dos tempos de escola, companheiro de aventuras e cúmplice de travessuras.
- Claro que podes… e o que é que se diz também?
- Obrigado, Leo… - lá murmurou o Tomás, rodando o embrulho entre os dedos – o que é ? Parece tão leve…
- É leve, sim… é um objecto mágico… e lembrei-me que agora que já tens 11 anos e que estás sempre a falar nas magias do Harry Potter… haverias de gostar de fazer tu mesmo… magia…
O Tomás lá foi desembrulhando o papel colorido e o laçarote vermelho. Uma caixa, uma vulgaríssima caixa de cartão branca. Abriu-a. O que era aquilo?
A mãe também se esticou toda para poder espreitar.
Uma cana?
Um pedaço de bambu?
- O que é, Leo? É uma daquelas flautas de madeira? Faz som?
Leo sorria, um olhar de malícia a enrugar-lhe o rosto moreno. Luísa, a mãe do Tomás, acompanhava a expressão de surpresa do filho, também ela à espera de mais pistas para perceber a função daquele pequeno pedaço de bambu – um palmo de tamanho, não mais, meio seco, meio esverdeado.
- Também ainda não percebi para que serve… mas aqui o Leo deve desvendar o mistério – e lançou-lhe um olhar divertido – vá, Leo…conta…
Leo tentou colocar o seu ar mais circunspecto.
- Bem… isto é… uma varinha mágica… verdadeira. Uma varinha mágica de verdade.
Luísa ria, Tomás continuava à espera do desenrolar dos acontecimentos. Leo sempre tivera um jeito especial para lidar com crianças, talvez pelo modo de falar… ou por aquela entoação de contador de histórias com que conseguia prender a atenção de qualquer um. Com frequência juntava um grupo de miúdos na loja e ficava a jogar com eles as últimas novidades saídas no mercado, ou a inventar histórias dos tempos em que – por não existirem ainda jogos de computador – se brincava de outro modo.
Um dia, um miúdo dissera-lhe algo que o deixara a pensar:
- Leo… tens mesmo a certeza que quando tinhas a minha idade não havia jogos de computador? Então… tu não brincavas? Estavas sempre a estudar?
Fora complicado – recordava-se – tentar explicar aquela criança que já existia vida no planeta antes de surgirem os computadores… e que sim, existiam jogos e brincadeiras que obrigavam a correr e a saltar, a mover peças em tabuleiros ou até a fazer corridas de carrinhos de brinquedos ou fantásticas batalhas com soldadinhos, quer fossem de plástico ou de chumbo.
E agora ali estava o Tomás olhando fixamente para ele, à espera de uma explicação mais convincente para a estranha prenda.
Olhou para a Luísa e esta abriu mais os olhos, naquele trejeito característico como que a dizer “ E então? Dizes ou não dizes? “
- Então é assim… - lá começou ele, bem devagar, arrastando propositadamente as palavras – esta varinha… é mesmo mágica, como já te disse… e só pode ter um dono, só pode ser usada por uma única pessoa… crês que poderás ser tu essa pessoa? Sentes-te capaz ?
Claro que o Tomás se sentia capaz. Não era preciso frequentar um colégio de bruxos, como o Harry Potter, para perceber que cada varinha mágica só podia ter um dono. Apesar do aspecto daquele pedaço de bambu ser… bem diferente das varinhas mágicas dos filmes.
- Muito bem… - e Leo apontava para a varinha – a primeira coisa que terás que perceber é que essa varinha ainda não te conhece, não sabe quem tu és… e portanto, terás que lhe dizer isso, para ela te reconhecer no futuro. Compreendes?
O Tomás abanou a cabeça, os olhos bem abertos a seguir o movimento das pontas dos dedos do contador de histórias.
- Sim… percebo…. E como vou fazer isso?
- Ora… é muito simples, Tomás… só necessitas de gravar o teu nome na tua varinha… pegas num canivete com muito cuidado, para não te magoares… e talhas na madeira as letras do teu nome… e assim a varinha já saberá para sempre quem tu és…
Luísa abanava a cabeça, entre o surpresa e o divertida. Onde ia Leo arranjar sempre aqueles estratagemas?
- … e depois, Tomás… agora é que vem a parte importante, vê se prestas bastante atenção… estás com atenção?
Tomás só piscou os olhos, quase hipnotizado.
- Certo, muito bem… então Tomás, o que tu terás que fazer é estar atento… durante todo o dia… estar atento… e se te acontecer algo de invulgar, de extraordinário… deverás gravar uma marca na tua varinha. Uma marca por cada momento especial que ocorra durante o teu dia… estás a compreender-me?
Tomás disse que sim.
- E se não acontecer nada de especial?
- Então só significa que não estiveste com atenção… porque estão sempre a acontecer coisas especiais à nossa volta… e quase nunca reparamos nelas…. Só podes fazer marcas na tua varinha quando te acontecer algo. E a tua varinha ficará cada vez mais poderosa… à medida que acrescentares mais marcas…. Cada vez mais marcas…. Entendes?
Foi Luísa que abanou a cabeça, como se a mensagem lhe fosse dirigida. Apetecia-lhe interpelar o amigo, para no mínimo conseguir perceber onde ia ele buscar inspiração para tudo aquilo… mas a presença do filho aconselhava a deixar o assunto para melhor altura.
- Ouviste o Leo, Tomás? Percebeste o que tens que fazer?
- Percebi… mas deve ser difícil…
- Difícil? Claro que não é difícil… se o Leo disse que é assim que resulta, ele lá sabe… só tens que ter atenção, não é Leo?
Foi a vez de Leo concordar.
- Isso mesmo… estar atento… estar atento à magia que acontecer à tua volta…
E depois desta curiosa conversa se passou uma semana…. Duas semanas.
- Olá, Leo…
Tomás vinha sozinho, a mochila da escola às costas.
- Tomás… há muitos dias que não aparecias… então hoje vens sozinho? A mãe não veio?
- Veio… mas está ali numa loja a comprar roupa e deixou-me vir aqui… e espero aqui por ela…
- Ah, muito bem, muito bem… e então? Está tudo bem contigo?
Tomás exibiu um sorriso mais alegre que o habitual.
- Está tudo bem… e eu vim cá para lhe fazer uma pergunta… sobre a varinha.
- Ah… a varinha. Certo, certo… já percebeste como funciona? Já fizeste marcas?
O olhar do rapazinho iluminou-se ainda mais.
- Sim… eu acho que sim… e é mesmo por isso que eu não sei…. Tenho uma duvida, Leo…
- Então, Tomás? Fala à vontade, sem problemas, aconteceu alguma coisa?
- Pois… sim e não… será que eu posso fazer de uma única vez duas marcas na varinha?
- Duas marcas? Essa agora… não sei se te estou a acompanhar…
- Pois… fazer duas marcas seguidas… é que aconteceram duas coisas mágicas, e logo seguidas uma à outra…
O vendedor arregalou os olhos. Porque é que as crianças conseguem sempre surpreender os adultos, mesmo quando estes pensam controlar todas as variáveis?
- Duas marcas… bem…. É uma situação invulgar, deveras invulgar… não é melhor seres um pouco mais explícito? E se me contasses pelo menos um pouco do que aconteceu? Talvez assim eu te possa responder melhor…
Tomás queria contar, notava-se pelo olhar. Ansiava por partilhar qualquer coisa de extraordinário.
- A Joana deu-me um beijo – atacou sem rodeios – no intervalo das aulas. Chamou-me e disse-me que me queria contar um segredo. E eu fui… e então ela beijou-me. Duas vezes. Eu gostei mais do segundo.
Leo abriu e fechou a boca, sem saber muito bem como manter a expressão séria. Acabou por sorrir, bem disposto.
- Isso sim, é magia. Magia pura, Tomás… Fico muito feliz que tenhas percebido isso… mas só não entendo porque me perguntaste pelas duas marcas…
- Oh Leo… é que… depois dela me dar os dois beijos, nem imagina o que ela fez…
Pois está claro que Leo não imaginava. A expressão incrédula não necessitava de legendas.
- Pois não, não imagino mesmo… aliás, nem sei quem é essa menina Joana de que falas…
- A Joana, depois dos beijos… abriu a mochila e … adivinhe… ela também tem uma varinha mágica, parecida com a minha, mas parece-me que é cor-de-rosa… e então ela pegou no corta unhas e fez lá uma marca também… e ela já tem imensas marcas na varinha … não é estranho? Por isso é que vim perguntar… será que isto conta também para mim? Posso fazer mais uma marca na minha varinha, Leo? Posso?
Leo permaneceu imóvel, aturdido. Acabara de perceber quem era a Joana de que o Tomás falava; a filha do Alberto, um ex colega de tropa.
Sim, conhecia perfeitamente a Joana… desde que nascera. E gostava muito dela também.
- Se podes fazer mais uma marca na tua varinha, Tomás? Pois bem… sabes? Eu acredito que te aconteceu algo de tão especial, tão especial mesmo… que sim… será muito boa ideia fazeres mais uma marca na tua varinha mágica…
A vida é cheia de momentos especiais mesmo, nós é que normalmente não estamos atentos a eles... se calhar era boa ideia arranjarmos todos uma daquelas varinhas de bambu e irmos fazendo as nossas marcas... se calhar éramos mais felizes ao termos a noção do quão especial pode ser a vida... sempre, todos os dias... marcar as coisas boas.. que para as más, não fazem falta marcas.
ResponderEliminarAdorei... como sempre.
Jorge Soares
Rolando
ResponderEliminarAs magias da vida são as que são completamente inesperadas, né? A vida é uma delícia!
beijos
Anne
hummmm varinha cor de rosa?! Eu sou cor de rosa! Será que se eu procurar no meu lago, vou encontrar uma varinha?! Cor-de-rosa?? Quantas marcas terá ela?? Posso marcar esta história do Tomás?? (no caso de a encontrar perdida no meu lago?)...hehehe!! Tu é que fazes magias com as tuas histórias, iluminas os corações a muitos!! Bjs
ResponderEliminarO Tomás podia estar curioso, mas eu não lhe fiquei atrás ahahahahah
ResponderEliminarGostas de manter a gente presa até ao fim. Maroto!
Não estaremos todos nós como a varinha, cheios de marquinhas???
Acredito que sim. Basta procurar...
Jorge,
ResponderEliminarA vida, sim... merecia uma varinha, com muitas marcas, um por cada momento em que respiramos... por vezes esquecendo a magia que é estar... VIVO.
Um abraço.
Anne, " a vida é uma delicia ".
ResponderEliminarGostei mesmo. Verdade.
Merece ser saboreada, não é?
Beijos.
Oh Nenufar, claro que podes marcar a historinha. E que muitos sorrisos possam surgir por aí e no rosto de quem, ao ler estas histórias "infantis"... se sinta ainda uma criança.
ResponderEliminarBeijos.
Dida,
ResponderEliminarEstamos cheios de marquinhas, pois estamos... não seria mais um motivo para todos nós conseguirmos fazer magia?
Claro que conseguimos...
Beijos, amiga.... e muita magia.
Gostei muito de como escreve.
ResponderEliminarGábi