sábado, 9 de julho de 2011

Leopoldo, a cegonha


Quase, quase… um primeiro dia de verão.

Que ainda não o era.

A primavera tardia transformara-se num tempo de chuvas, intercalando pingos de Inverno e as cores fortes do verão, secando as espigas de trigo e alourando os campos.

Princípios de Junho. Em breve – muito em breve – o estio seco cobriria a planície de videiras multicores, fardos de palha e cantos de ceifeiras. O céu ficaria mais azul e sem nuvens, as crias dos pássaros abandonariam os ninhos, os ribeiros murchariam sem água e as papoilas seriam substituídas por malmequeres amarelos.

No alto dos eucaliptos, as cegonhas mais jovens aprenderiam a voar, treinando a fantástica viagem de regresso a africa.

Ou pelo menos… quase todas.

Leopoldo Malaquias era uma dessas cegonhas que, pelos ossos do ofício, não poderia acompanhar a família no regresso aos planaltos quentes de africa. E isto porque a veterana cegonha Malaquias tinha uma das tais profissões especiais, que não se compadecem com o rodar das estações.

Leopoldo Malaquias era… um entregador.

E se os meus amigos estão pensando com um sorriso naquela imagem tão familiar de uma cegonha carregando um embrulho de pano, seguro no bico… com uma criança lá dentro…pois é verdade, não se enganaram por completo. Mas…

Bem… existe sempre um “mas”, não é verdade? Ou vocês sempre acreditaram que as cegonhas só transportavam… bebés? Não, claro que não…. Seria um desperdício enorme de talento, não vos parece?

Pois é verdade, Leopoldo Malaquias era um desses anónimos entregadores, um estafeta incansável e competente, trilhando os cinco continentes e podendo gabar-se – sem falsa modéstia – de nunca ter extraviado uma encomenda. Não, nunca.

Mas também é verdade que – apesar dos muitos anos que já levava de profissão – nunca fora solicitado para entregar uma encomenda… como aquela.

Abriu e fechou o longo bico, divertido. Os humanos – sim, quem mais senão os humanos para estabelecer aquele laço tão especial com as cegonhas – ainda conseguiam, de tempos a tempos… surpreendê-lo. Lembrava-se de já ter transportado bebés – muitos – entre continentes, alguns até adoptados, flores, pássaros exóticos, até alianças de ouro… e uma bicicleta; entregas estranhas, porventura excêntricas… mas certamente com significado especial para quem as enviava… e sobretudo para quem as recebia.

Muito raramente, a cegonha Leopoldo pernoitava no local de destino, após efectuar a entrega. No princípio… adorava espreitar pelas janelas embaciadas, ouvir os gritos de alegria quando o destinatário se apercebia que chegara a sua tão preciosa encomenda. Com o tempo, a monotonia vencera a curiosidade e limitava-se a deixar o precioso embrulho, pousado num beiral ou junto da chaminé… e retornar a casa, para junto da sua própria família. Sim… apesar dos humanos nem se aperceberem de tal…. Ela também tinha uma família.

Ajeitou cuidadosamente a sua encomenda, prendeu os cordões que fechavam o embrulho de pano e aprontou-se para partir.

Seria a primeira vez que iria entregar uma pequena caixinha de madeira contendo… sementes. Sim, isso mesmo, perceberam bem… sementes.

A história era longa, e nem lhe competia a ele, Leopoldo Malaquias, reproduzi-la. Sabia simplesmente que o destinatário da encomenda era uma mulher, de meia idade, com filhos, com uma história de vida complicada. Sabia também que o remetente da encomenda era um homem, também com filhos, apesar de não lhe conhecer o nome ou a origem. E sabia também que a caixinha de madeira continha seis sementes, acompanhadas de um papel dobrado, contendo talvez a explicação de tão estranha entrega.

E na verdade, sabia ainda outra coisa. Que a mulher a quem se destinava a encomenda… não podia ter mais filhos, por motivos que certamente não eram do seu pelouro.

Ensaiou um bater de asas, reviu mentalmente todos os procedimentos… antes de se lançar ao voo. A viagem era longa, um oceano para atravessar, era imperioso não esquecer nada.

Três, quatro, pronto… talvez cinco vezes. Mas para quê resistir mais à tentação? Sabia perfeitamente que mais tarde ou mais cedo abriria a pequena caixa, roído pela curiosidade. O que se encontraria escrito no pequeno papel?

Com um gesto certeiro do longo bico, retirou o laço que segurava o papel dobrado da embalagem. Este tombou sobre o terraço de tijolo, desdobrando-se perante a sua curiosidade. Finalmente podia ler.

" Três destas sementes são tuas, as outras minhas. São iguais, impossível distingui-las. A todas elas daremos água, afastaremos os predadores e cantaremos canções de embalar. Crescerão num canteiro a que chamaremos de lar e quando elas próprias gerarem sementes… fechar-se-á o ciclo do mais improvável dos amores que este mundo já conheceu. E assim será. "

A cegonha Malaquias passou o bico pelas penas brancas, num gesto inconsciente de meditação. Não compreendera em absoluto o conteúdo da estranha mensagem… mas verdade seja dita, os humanos tinham esse raro condão de escrever coisas estranhas, ilógicas, irracionais… regadas por aquela palavra "amor" que teimavam em utilizar de modo quase absurdo.

Sementes? O que quereriam os humanos dizer com… sementes?

Não, decididamente… um mundo demasiado estranho, o dos humanos.

Bateu as asas e lançou-se nos ares. Mais uma entrega.

Seis sementes, de enigmático significado.

Um homem, uma mulher, seis sementes.

Ser cegonha, viver a vida de uma cegonha… era na verdade, incomparavelmente mais simples…

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O estafeta nº 15


- Estafeta número doze… muito bem… aqui tem…. Número treze… muito bem, obrigado, aqui está a sua encomenda…. Estafeta número catorze… a sua, está aqui, pode pegar… estafeta número quinze…

( silêncio )

- … estafeta número quinze?

( silêncio )

- Estafeta número quinze? Juan? Onde está o Juan?

Um silêncio embaraçado envolveu a sala. Mestre Policarpo, chefe de todo o departamento de distribuição postal, engrossava a voz… e quando isso acontecia….

- Juan !! – gritou, esticando o pescoço para parecer mais alto - … sempre atrasado… onde está esse inútil?

Ninguém lhe respondeu.

Todos os estafetas sabiam muito bem que os atrasos de Juan à chamada matinal só podiam significar uma coisa. E portanto… nem valia a pena dizer o que fosse, pois uma simples virgula só iria irritar ainda mais mestre Policarpo, já de si à beira da explosão.

Um bater de asas vigoroso e alguns segundos depois, um pombo cinzento claro, de pescoço branco e penas brilhantes, entrou pela janela aberta da torre e pousou desajeitado no chão de pedra, a meia distância entre o mestre Policarpo e os catorze estafetas, bem alinhados.

- Perdão, mestre Policarpo… pelo meu atraso… o vento estava horrível, uma confusão enorme… até uma águia me perseguiu… peço perdão…

Mestre Policarpo, encarregado do serviço de distribuição postal, tinha a seu cargo quinze estafetas… quinze pombos correio.

Ele próprio já fora estafeta, nos seus tempos de juventude; e no entanto, apesar da já longa carreira, nunca encontrara um estafeta como Juan, o pombo correio cinzento de pescoço branco.

- Juan… ( e esforçou-se por manter a voz inalterada ) … essa é a desculpa mais esfarrapada que já ouvi em toda a minha vida… e você está novamente atrasado…

- Perdão, mestre… não voltará a acontecer…

Mestre Policarpo alisou as penas, tentando acalmar a raiva.

O pombo Juan era o mais veloz, astuto, o que melhor se orientava, o que nunca deixara cair uma encomenda ou tampouco fora ferido ou capturado pelas águias. Mas Juan também era… um incorrigível pinga-amor, e todos conheciam de sobra os verdadeiros motivos dos constantes atrasos às chamadas matinais.

O pombo Juan adormecia… ao raiar da aurora.

- A sua encomenda, Juan… - e entregou-lhe uma pequena anilha de mensagem – a sua entrega de hoje…

Juan enfiou a anilha na pata e perfilou-se junto dos colegas, já alinhados para a partida.

- Vá… vão…. – mestre Policarpo bateu as asas em voz de comando – e cuidado… muito cuidado lá fora…

Um a um, os estafetas abriram as asas e descolaram, galgando a janela aberta da torre rumo a um céu sem nuvens. Cada um levava uma mensagem, uma encomenda, uma notícia, cada qual para seu destino.

Na torre ao lado, residia mestre Policarpo.

E era precisamente numa das janelas abertas dessa torre que espreitava ansiosa uma pomba branca, olhos verdes claros como a erva molhada dos jardins.

Pia era o seu nome… e mestre Policarpo o seu pai.

O velho pombo correio ficou a vê-los partir, ora acenando a cada um deles, à medida que ultrapassavam o umbral da janela… ora espiando pelo canto do olho a pomba branca na sua janela.

O estafeta Juan foi o último a lançar-se no espaço.

Bateu as asas, deu duas voltas sobre si mesmo e antes de se aventurar no espaço aberto contornou a torre e desceu planando até à janela onde Pia, a pomba branca, aguardava imóvel e em silêncio.

Não chegou a pousar. Batendo simplesmente as asas – mais devagar – planou diante dela e por um breve segundo… os bicos roçaram um no outro, num secreto código de entendimento.

Depois, soltou-se nos ares, grasniu algo baixinho e voou em direcção ao sol.

Tinha uma mensagem para entregar.

Da janela da primeira torre, mestre Policarpo observara toda a cena.

Abanou a cabeça, num gesto difícil de definir.

- Jovens…. – murmurou baixinho – jovens… e loucos… ahhh.... se eu tivesse menos vinte anos….