Houve um tempo em que a luz da aurora amanhecia sempre azul.
Houve um lugar em que o arco-íris nascia nas cascatas e descia o rio, por entre nenúfares e pirilampos.
Mas tudo isso foi há muito, muito tempo atrás… e num lugar já de todos esquecido.
Chamavam-lhe o paraíso.
O paraíso era povoado por muitas espécies de seres, vegetais e animais. Os céus fervilhavam com o grito dos pássaros, a terra coloria-se de répteis e mamíferos, as águas dos rios transbordavam de peixes e pedras falantes.
Sim.. pedras falantes.
Naquele tempo e lugar distantes… todos os seres vivos tinham a capacidade de falar e de ser ouvidos, numa linguagem universal comum a todos.
Árvores de fruto, arbustos, flores e trevos de quatro folhas, planícies imensas cobertas de lençóis coloridos, numa eterna primavera.
O jovem pavão abriu o seu leque majestoso, exibindo as penas multicores para a companheira.
- Vens comigo?
Ela estremeceu, as penas brancas encolhidas num frémito de temor mal disfarçado.
- Tenho medo… tenho muito medo…
O jovem pavão esticou-se ainda mais, parecendo maior.
- Medo? Medo de quê? Nós podemos voar… para isso temos asas… nós podemos voar…
- Mas… - e a voz da companheira tremia – tu ouviste o Criador… e Ele foi bem explícito… não podemos voar…
- Claro que podemos… tu não entendeste bem… Ele disse que não devemos voar, porque é perigoso, porque nos podemos magoar, etc, etc… só isso…
- Não, não… não foi isso que Ele disse. Eu ouvi bem… se tentarmos voar, cairá um castigo enorme sobre nós, seremos transformados numa coisa qualquer que Ele disse o nome mas que agora nem recordo… e que deixaríamos de falar…. Tu consegues imaginar isso, deixar de falar? Seria horrível…
- Pompilia, minha querida… não tenhas medo… isso é tudo uma invenção do Criador…. cheio de boas intenções, claro… mas não passa de uma invenção…
- Não, Pompeu… Ele falou muito a sério… eu senti aquela voz muito séria mesmo…
Pompeu, o pavão, já estava decidido… e nem a companheira o faria mudar de opinião. Afinal de contas… porquê ter asas sem poder voar? Quantas vezes não erguera já ele os olhos ao céu, morrendo de inveja de todos os pássaros esvoaçantes? Quantas vezes não abrira já as asas… sentindo que com um pouco, só um pouco de esforço…. Poderia voar? E só porque o Criador dissera “ Não “… não poderia voar? Onde estava a justiça de semelhante decisão? Não teria ele os mesmos direitos de todas as outras aves, não era ele próprio uma ave? Pois então… se era… deveria poder voar.
Pompilia, a companheira, observava-o de perto. Temia as consequências daquele gesto, recordava perfeitamente as palavras duras do Criador… quando lhes havia dito “ vós sois as criaturas mais belas que criei… as únicas a quem dei todas as cores do arco-íris. Podeis fazer o que quiserdes, ir onde vos aprouver, usar e deliciar-vos com tudo o que encontrares. Este lugar é vosso, moldei-o à vossa imagem… e para vos fazer felizes. A única excepção será… o não poderdes voar. Reservei os céus para outras criaturas, a vós concedo-vos tudo o que está abaixo deles “
Pompeu esticou-se um pouco mais, até ao limite.
Abriu as asas – uma e outra vez – ganhando impulso, velocidade, potência.
Sentiu que faltava pouco, faltava muito pouco. Só mais alguns movimentos…
- Pompeu, por favor… não o faças… não… - implorou a companheira.
Mas Pompeu, majestoso de cor e audácia, já não a ouvia. A excitação apoderara-se por completo do seu corpo, inebriava-lhe os sentidos. Voar. Iria voar.
Sentiu que chegara o momento.
Um último batimento de asas e um pequeno impulso final com as patas…
Finalmente…
Um raio ofuscante de luz – talvez sol – cegou-o no mesmo instante em que as patas largaram o solo. Logo de seguida, uma rajada súbita prostrou-o por terra, empurrando-o violentamente contra o tronco da árvore mais próxima.
Pompilia tentou gritar para o companheiro… mas a garganta não lhe obedeceu; um coro de ruídos estranhos encheu os ares, palavras entrecortadas de soluços e lágrimas.
E foi então… que a transformação, lenta e inexorável… se iniciou.
As penas dos dois pavões perderam rapidamente a cor e caíram por terra, o corpo alongou-se, as patas engrossando e ganhando formas estranhas, as asas mudando de aspecto, membros fortes, a cabeça a alargar-se…
“ Deixareis de ser as aves mais belas do universo e transformar-vos-ei em humanos, seres desprovidos de penas e de canto, far-vos-ei caminhar descalços pelos campos para sentirdes as pedras sob os pés… e deixareis de falar a linguagem de todos os seres vivos, sereis surdos aos seus apelos e à sua magia, aprendereis palavras rudes e não… não voltareis a poder tocar o arco-íris “
Demasiado tarde para voltar atrás.
Pompilia ainda tentou chamar o companheiro, mas já nem conseguiu reconhecer o som da sua própria voz.
- Pompeu…
A floresta emudeceu de repente.
As duas figuras humanas continuaram deitadas no chão, repleto de trevos de quatro folhas, imersas num sono profundo.
Quando a noite caísse e o frio as despertasse, um novo mundo e um novo tempo iria começar. E a memória desse lugar longínquo a que chamavam paraíso… perder-se-ia para sempre… restando apenas lampejos soltos durante as noites frias de Inverno…a que chamariam talvez… sonhos.