quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Dom Quixote - Epílogo


Naquele dia, D. Quixote acordou em sobressalto.

Sonhara com moinhos de vento, batalhas, caminhos poeirentos de lança em riste, sempre na companhia do seu fiel vizinho do fundo da rua, Sancho Pança.

Esfregou os olhos, cego pelo raiar da manhã. Dois tímidos raios de sol rasgavam a janela e aqueciam a penumbra do quarto. Estava atrasado.

Os combates – ditavam as boas regras da cavalaria – deveriam sempre dar-se inicio ao alvorecer da manhã.

Tentou sair da cama em silêncio.

- Quixote… onde vais a esta hora da manhã?

- Ahhh… Dulcimeia, minha querida… acordei-te… dorme, meu amor… ia simplesmente buscar um copo de água…

- Quixote… conheço esse teu ar… é o ar de quem estava a pensar levantar-se.

- Não, não, claro que não, que ideia…

- Quixote !

O tom não admitia réplica.

- Bem… talvez estivesse a pensar… levantar-me um pouquinho, sim… mas só um pouquinho…

- Isso já eu sabia… mas porque insistes tu nisso? Quantas vezes já falámos nós sobre esse assunto?

- Mas, querida…

- Não, Quixote, não… não insistas. Eu é que ouço depois a mulher do Sancho Pança a queixar-se, que o marido chega todo cansado a casa, que tu o obrigas a correr atrás do teu cavalo e sei lá que mais…

- Dulcineia, meu amor, mas eu…

- Não, Quixote… mil vezes não. Volta imediatamente para a cama.

Ele olhou desconsolado para a porta entreaberta do quarto.

- E se for só um passeio pequenino? – ainda tentou – talvez só até ao moinho…

- Quixote !

Aquilo soou como uma ordem.

- Sim, meu amor…

- Quixote… que idade pensas que tens? Vinte anos?

- Não…

- Pois claro que não… tinhas vinte anos quando nos conhecemos e sim… nessa altura podias fazer tudo isso, lutar contra os teus moinhos de vento… até o teu vizinho Sancho Pança – que nunca foi magro – ainda conseguia correr… mas agora, Quixote… não crês que já é hora de descansares?

-Mas… Dulcineia, meu amor…

- Quixote… tens oitenta anos, querido… vá, vem para a cama…

- Dulcineia… mas que queres tu que eu faça? A minha pobre cabeça ainda não percebeu a idade que o corpo tem…

Dulcineia sorria.

Esperou que ele se deitasse novamente e ajeitou-lhe as pontas do lençol.

- Pronto, meu Quixote, assim ficas mais quentinho, dorme mais um pouco, ainda é muito cedo… eu depois chamo-te, está bem?

Dom Quixote acenou-lhe um sim e fechou os olhos. Adormeceria de novo e em sonhos recordaria de novo os moinhos da sua juventude, as batalhas passadas e aquele dia de sol, numa tarde de verão em que conhecera Dulcineia, a sua amada.

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