sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Nem tudo o que parece...


Não. Claro que não.

Levou a mão aos óculos, naquele gesto instintivo de quem esfrega os olhos ao acordar. Mas novamente não; para além de um borrão de gordura nas lentes, não conseguiu o efeito pretendido, ou seja… acordar.

E no entanto, mesmo depois de abrir e fechar os olhos várias vezes… a visão permanecia.

Travou suavemente, absorto e em êxtase.

Claro que em sonhos, até mesmo em filmes, a situação seria banal, corriqueira até. Mas na vida real, no monótono percurso entre a casa e o local de trabalho, na vizinha cidade a uma vintena de quilómetros… aquela visão não tinha nada de banal. Mesmo nada.

Ela – pois que de uma ela se tratava – continuava parava na berma da estrada, o gesto inconfundível de mão estendida e dedo esticado a pedir uma boleia para qualquer lugar.

E… se isso não bastasse… como qualificar a pele morena, generosamente revelada sob os calções mínimos ou aquela camisa axadrezada, com um nó bem acima do umbigo?

Pois… não havia palavras…simplesmente a sensação de que uma miragem descera à Terra e o presenteara com uma dádiva reservada a poucos mortais.

Um frémito de excitação percorreu-lhe o corpo ansioso.

Travou - desta feita com ímpeto – o coração a palpitar-lhe junto à boca.

Uma coluna de pó envolveu o automóvel, já de si bem precisado de uma lavagem, e ele esperou pacientemente que a mulher se acercasse. Sem querer, deu consigo a mirar-se ao espelho e a ajeitar o cabelo com a mão, num gesto instintivo de compor a imagem, um pouco empalidecida pelo passar dos anos.

Já não era um jovem de dezoito anos… mas não se sentia propriamente velho; pelo menos, gostava de se descrever como um jovem de espírito, mau grado aquela barriguinha proeminente e a cabeleira grisalha que anunciava os quase cinquenta… ou seja, as quarenta e nove primaveras.

Esperou, esperou… e continuou a esperar. Onde se teria metido a mulher? Bem que procurou descobri-la pelo espelho retrovisor, mas nada. Nem tão pouco da sacola de couro ou do guarda-chuva cor-de-rosa que julgara ver na estrada, aos pés dela. Onde estaria?

- Dá-me uma boleia para a cidade?

A princípio nem reparou nele, completamente desnorteado. Bem que esticou o pescoço para trás, tentando descobri-la. Mas onde? Uma mulher daquelas não podia, pura e simplesmente, evaporar-se assim. Não, seria crueldade a mais. E tinha a certeza que mais nenhum automóvel parara no local, a estrada continuava deserta. Então… onde, onde estaria a mulher?

- Obrigado, amigo… - e o velhote, perante o silêncio dele – quem cala consente – lá abriu a porta do lado do passageiro e, sem se fazer rogado, sentou-se bem ao comprido no assento. - … estas pernas já não são o que eram, sabe? Cheguei a fazer este caminho a pé, imagine…

- Mas… mas…. Eu ia… - ainda tentou dizer que parara por outro motivo, que vira uma mulher deslumbrante na berma da estrada, que nunca tivera o hábito de dar boleia a ninguém… mas o olhar aflito desmentia-o… e por mais que procurasse… na berma…. Até do outro lado da estrada…. Nada, nem sinal da estranha visão.

- Ó Homem… você está bem? – e o velhote fixava-o preocupado – até parece que está quase a ter um ataque de coração…

Finalmente… caiu em si. Uma alucinação, só podia ter sido uma alucinação; o calor, ou o excesso de trabalho, talvez até as ultimas noites mal dormidas – ou até o inevitável facto de não estar com uma mulher há muito tempo, demasiado tempo… mas fosse como fosse, era uma alucinação cruel. Nunca lhe acontecera tal.

- Não, não… - lá deu por si a responder ao homenzinho – está tudo bem… é só o calor… e para onde vai o meu amigo? Não me lembro de alguma vez o ter visto, aqui por estes lados… e eu que me gabo de conhecer quase toda a gente…

O velhote sorriu, os dentes amarelados a espreitar sob a barba mal feita.

- Vou para a cidade, pois então… vivo ali no morro, num daqueles reboques, sabe? E também não me lembro de alguma vez o ter visto, aqui nesta estrada…

Observaram-se mutuamente, como se do início de uma dança de salão se tratasse; o condutor do automóvel, vendedor de artigos de pesca, permanentemente em viagens pela região; o velhote mal vestido e de odor pouco higiénico – um par estranho, sem dúvida.

- Então hoje é dia de ir até à cidade, hem? – e o vendedor lá conseguiu sorrir, mal refeito do sucedido – vive aqui perto?

O velhote concordou, com um aceno de cabeça.

- Vivo… ali junto do lago, num daqueles reboques velhos que sobraram do parque de campismo, não sei se você conhece… é uma vida descansada…

O vendedor lá deu um puxão ao volante, evitando in extremis um buraco mais acentuado no asfalto.

- Vida descansada… era bom, era mesmo o que eu agora precisava, ando mesmo a precisar de reforma…

O velhote coçou a barba, num gesto repetido de quem tem por hábito fazer as coisas devagar, bem devagar.

- É mesmo… eu também já me reformei… estava farto de atender clientes chatos, presunçosos, sempre de nariz levantado e dedo espetado a dar ordens…. Sempre a dar ordens…

- Não me diga… e o que fazia você? Não me parece que seja assim tão velho…

O velhote riu-se.

- Pois não… claro que não sou assim tão velho… era tratador de animais… era isso que eu fazia… e sabe que mais? Há muitos donos que não merecem os animais que têm, não merecem mesmo… vi muitas coisas, muitas coisas… que você nem imagina…

Continuaram de conversa, uma vintena de quilómetros de cavaqueira descontraída. O vendedor de artigos de pesca estava encantado com o seu passageiro; o velhote sabia tudo sobre animais, é certo… mas também sabia que as trutas preferiam os rios mais frios, que os salmões apareceriam em Novembro e que desde que a nova barragem fora inaugurada, os peixes escasseavam, as garças fugiam para norte e os turistas deixavam cada vez mais lixo à beira do lago.

Alcançaram a cidade meia hora depois.

- Pode deixar-me aqui na entrada… junto do cruzamento…

O automóvel deteve-se e o velhote saiu, um pouco enferrujado das pernas.

- Obrigado pela boleia…

O vendedor acenou-lhe.

- De nada… você faz boa companhia… havemos de beber um copo juntos, da próxima vez que nos encontrarmos…

- Isso não sei – e o velhote lançou-lhe um olhar enigmático – quando me sentei até parecia que você tinha acabado de ver um fantasma… ou que estava a ter um ataque de coração…

Riram-se os dois.

Meteu a mudança e arrancou. De relance, ainda lançou um breve olhar pelo espelho retrovisor, para ter a certeza que o velhote estava bem, carregado com o saco, aparentemente bem pesado.

Agarrou-se com força ao volante, para ter a certeza. O que era aquilo?

Não… não podia ser.

Olhou novamente, como quem se recusa a acreditar na mais óbvia das evidências; não, não havia engano possível… era mesmo ela… a tal mulher… mas como… como podia ser? Estava a ficar louco…

E ela acenava-lhe com a mão, um adeus sorridente que uma fracção de segundo antes ele era capaz de jurar estar a ser feito pelo simpático velhote, parado naquele preciso lugar, à beira da estrada.

O saco… sim… como pudera nem ter reparado no pormenor? O saco era o mesmo, sempre fora o mesmo, só não reparara no guarda chuva cor-de-rosa… mas o que era aquilo tudo? Que estranha alucinação, ou sonho, ou fosse o que fosse? O que lhe estava a suceder?

Logo de seguida, reparou no pequeno papel, abandonado sobre o assento ao lado; provavelmente, caíra-lhe do bolso, ou o velhote o deixara cair, ao sair do automóvel. Soltou uma das mãos do volante para o poder apanhar e desdobrar.

Uma caligrafia miudinha, incerta, mas bem legível surpreendeu-o. Dizia simplesmente assim:

“ Nem tudo o que parece… é.”

1 comentário:

  1. Por vezes os nossos desejos são maiores que a realidade... faz parte da vida.

    Bom fim de semana Rolando

    Jorge

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