"Onde levam os passos?"
Não sabia a resposta. Sabia simplesmente que deveria caminhar, caminhar sempre, sem olhar para trás.
Puxou a gola para cima e apertou o cachecol. O frio fazia-se sentir, húmido e desagradável, acompanhado de um vento norte que teimava em agitar as folhas das árvores. O inverno, ali, era sempre assim - cinzento e chuvoso.
Debruçou-se sobre a amurada da ponte. Do outro lado do rio, a margem fervilhava com os transeuntes ansiosos, olhos postos no céu, à espera do primeiro clarão. Luzes, gritos, a torre da igreja engalanada, as iluminações de Natal a emprestar às ruas um ar festivo e aconchegante.
- Porque não será sempre assim? - deu consigo a pensar, enquanto percorria com o olhar a longa marginal, pejada de uma massa humana em constante movimento.
Dez segundos para a meia noite.
Era estranho... o significado que cada um podia atribuir às coisas, consoante a disposição, o estado de espírito, o dia do ano... porque seriam aqueles últimos dez segundos do dia assim tão especiais? Simplesmente por serem também os últimos dez segundos do ano, de mais um ano? E porquê toda aquela ansiedade, aquela excitação, as passas contadas na mão, as mãos crispadas nas rolhas das garrafas de champanhe, à espera das badaladas do relógio da igreja?
Porquê?
Há muito, muito tempo atrás... recordava-se de ser criança... e de toda aquela excitação. A mãe dizia-lhe " tens que ser rápido, não te esqueças... pegas numa passa, formulas um desejo, outra passa, outro desejo... não te atrases, tens que acompanhar as badaladas do sino..."
Ah... não, nunca conseguira, perdia-se sempre. À quarta ou quinta passa, já misturara todos os desejos e só pensava em colocá-las rapidamente na boca, antes que o sino anunciasse a décima segunda badalada e o principio do ano novo...
Seria por isso que nem todos os seus desejos se concretizavam? Pelo karma atrasado de todas aquelas passas engolidas à pressa, nos felizes anos da infância e adolescência?
Sorriu. Sim, talvez... era uma hipótese.
A primeira badalada interrompeu-lhe o devaneio. Forte, acompanhada de um clamor de gritos. E depois uma segunda e ainda uma terceira.
- Onde levam os passos?
Puxou do bolso o pequeno saco de flanela vermelha e de lá retirou um par de amendoins, que levou à boca.
A multidão, do outro lado do rio, exultava.
Seis... cinco... quatro...
Por um segundo, um ínfimo segundo... apeteceu-lhe estar ali com eles, mergulhado naquela alegria contagiante, gente anónima sem um propósito, simplesmente eufórica com o desejo que o novo ano fosse sempre melhor que aquele que findava. E mesmo sem mais certezas para além desse ingénuo desejo... preparavam-se os copos, atentos ao saltar das rolhas...
Voltou de novo a atenção para a fotografia que segurava na mão; um rosto de pele tisnada, já bem entrado nos anos, olhos azuis, cabeleira farta e grisalha - um ar de pescador, só podia ser um pescador.
Sabia bem qual a sua missão. Não era a primeira vez que a desempenhava, nem era de longe a sua preferida. Mas fazia parte da vida, do eterno jogo de equilibrio entre todas as coisas à face da terra, um equilibrio entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre o estar ali, daquele lado da margem do rio... ou do outro lado do rio, junto da multidão.
Tudo tinha o seu tempo... e ele já tivera o seu tempo, o tempo em que vivera na outra margem do rio. Agora, muito tempo volvido... mudara de margem... e tinha a mais penosa das tarefas entre mãos.
Preferia - oh, como preferia - poder simplesmente caminhar entre eles, distribuindo amendoins e sorrisos, ajudando discretamente nos pequenos percalços das vidas diárias... mas naquele momento, a tarefa era outra.
Três... dois...
Algures por entre a multidão, o rosto da fotografia não sabia ainda - como poderia ? - o quão estava perto do fim...
Se lhe fosse permitido adivinhar o futuro, talvez tivesse atribuido um outro significado aquele ardor incomodativo no peito, aquele zumbir nos ouvidos, às tonturas passageiras do dia anterior. Mas o futuro não se adivinha, espera-se. E ele chega de mansinho, inexorável. E para o rosto da fotografia, a última badalada da meia noite coincidiria com o momento fatal. O coração pararia, o mundo rodopiaria diante dos olhos... e ele cairia anónimo no chão, sem ninguém reparar. Os olhos estariam colados ao fogo de artificio, os gritos de alegria encheriam os ares e ninguém prestaria atenção ao vulto moribundo sobre as pedras da calçada. Nem tão pouco reparariam quando o homem da ponte se aproximasse e lhe desse a mão, o segurasse e uma névoa azulada se desprendesse dele e se elevasse nos ares.
Não, ninguém repararia, certamente.
Um... Feliz ano novo...
Um estrondo imenso de mil foguetes encheu os céus, pintando a noite escura de mil cores. O frio desaparecera, o vento dera tréguas, um segundo de magia prolongava-se nos rostos felizes da multidão; beijos, muitos beijos, abraços, gritos, saltos esfusiantes de alegria. Se a felicidade dependesse de tão pequeno fragmento de tempo... sim, certamente que o novo ano seria o mais feliz de todos.
Com um gesto vagaroso, voltou a guardar a fotografia no bolso.
Correndo o risco de desagradar a quem o incubira da missão... já decidira.
Soltou a amurada e continuou a sua caminhada, ao longo da ponte, afastando-se da multidão. Afinal de contas, que mal poderia vir ao mundo... se adiasse aquela missão por umas horas, um dia até? Ninguém merecia morrer na última badalada da meia noite, pois não? Seria uma amarga ironia, que o principio de algo tão esperançoso como um novo ano tivesse que coincidir com as lágrimas de alguém.
Ergueu de soslaio os olhos ao alto, num silencioso pedido de compreensão.
- Eu sei,eu sei - murmurou entre dentes - sou um sentimentalista... mas Tu já sabias isso, quando me contrataste...
Também eu queria compreender, ROLANDO !...
ResponderEliminarUm abraço ao NOVO MUNDO !!!
Lindas lembranças dos rituais a serem swguidos em busca da "felicidade" nos minutos das badaladas da meia noite e raiar do novo ano...
ResponderEliminarQue 2011 seja lindo pra ti e teus!!!
abraços,chica
Rolando,
ResponderEliminarBem - vindo de volta! Bom ano de 2011!! Espero poder ler muito mais por aqui nos tempos que se seguem ;)
Fiquei contente por teres voltado... já te sentia a falta! Nao deixes que a fogueira se apague...
Beijinhos
Gostei muito do seu texto. Mas... qual é a boa ocasião para partir?
ResponderEliminarBom regresso à blogosfera.
Adoro a forma como gosta de alterar o rumo que a (vida) escrita leva.
ResponderEliminarParabéns.
Feliz ano novo. Não importa se o desejo antes ou depois da meia-noite do dia 31 de Dezembro.É sentido de qualquer jeito. Para si tudo do melhor que seja possível.
Um abraço,
Dida(flordeliz)
Obrigada pelo carinho. Feliz 2011!
ResponderEliminarPerder a vida no momento mais mágico do ano que passa.. justamente por ele não poder voltar para consertarmos nosso erros e arrependimentos, desejando que chegue logo o NOVO, tudo bem. Tudo bem sim, se for morte natural!
Eu também nunca consegui pedir desejos, não sei como alguém consegue pensar em 12 desejos enquanto come passas... eu não consigo.
ResponderEliminarHá coisas para as que não se escolhem momentos, até porque afinal é só mais um dia, o facto de se festejar nesse dia é um mero acaso, podia ser no dia anterior, ou no seguinte... podia de certeza ser noutra altura do ano, uma altura sem chuva e frio. A vida não é mais que um passar de dias... e pode começar ou terminar em qualquer um deles.... e não há desejo ou passa que a pare... ou que a impeça de parar.
Ainda bem que voltaste, já não era sem tempo.
Um enorme abraço e os meus desejos que cada dia seja para ti, melhor que o anterior.
Jorge Soares
Rolando,
ResponderEliminarConseguiste não só um sorriso, mas acender a chama da esperança em meu coração. Bem dizia “José Américo de Almeida:" “Na volta ninguém se perde."
Iniciar o ano de 2011, à volta de tua fogueira e com as tuas palavras aquecendo o nosso coração, é mais que uma surpresa: é um belo presente!
Obrigada!
0i Rolando
ResponderEliminarDepois de muito procurar aqui e ali resolvi ficar caladinha mas nunca desisti de ter voce de novo!!
Tudo tem o seu tempo...e a cada passo um novo horizonte , uma descoberta , uma nova missão.
Que bom recordar esse seu jeito de contar histórias.
Uma das boas sensações de 2011.
Fico fora um mês,só aguardo as chuvadas de verão acalmarem pra voar pra outra paisagem.
Na volta vou segui-lo implacavelmente rs
Um bom Ano ,boas vindas .
com abraços
Yessssss...quando vi o teu comentário lá no meu cantinho nem queria acreditar, li uma dúzia de vezes, e perguntava-me antes mesmo de clicar no nick, acho que tinha até algum receio de sofrer uma desilusão...ohhhhh...imagina clicar em cima e sair-me um outro "Entremares" saído das produndezas, fiquei assim meio parada, sem fazer nada, só olhando e pensando: Acho que vou ter um piripack daqueles, ANO NOVO com Rolando por perto...NOSSA...vai ser demais!!...
ResponderEliminarAmigo já estou abrindo o champanhe, ainda tens as canecas de barro, sim porque são as melhores ...fica sempre fresquinho, quero brindar contigo a Um ANO NOVO recheado de histórias, verdadeiras ou falsas, imaginadas ou vividas, encantadas ou mágicas, com algodão doce ou massa salgada, com chuva ou sol, com tudo aquilo a que temos direito,com admiração, entusiasmo e cumplicidade!!..
QUERO TE DIZER QUE ESTOU MUITO FELIZ POR ESTARES DE VOLTA, escolheste o momento certo, após as 12 badaladas um Novo ENTREMARES nasceu, e de sorriso largo nos brindou a todos com os seus primeiros passos...
FELIZ ANO NOVO...
°*___ °*__*°
*° _/*° _/ * TLIM-TCHIM!
**_|_ **_|_**´¨
Um bom ano para todos vocês, amigos.
ResponderEliminarQue o novo ano nos traga - para todos e para cada um em particular - aquilo que sonhámos, que todos os desejos se cumpram e, mesmo que fiquem alguns por realizar... que a meta fique mais próxima.
E agora, venham daí esses bolinhos, sentem-se lá aqui à volta e sirvam-se do café. Vá... quem é o primeiro? Ora bem... Se não me engano... foi o João.. João, venha para cá essa chávena... temos um brinde para fazer...
Rolando
Olá Rolando!
ResponderEliminarQue bom te ler de novo!
Que conto mais lindo!
Que bom que você voltou!
Alguns acreditam que essa passagem de ano, essa mudança, é algo simbólico. Que tudo continua igual, como qualquer dia que se finda e outro que recomeça.
Mas, não é bem assim, né amigo.
O que de fato acontece, é o início de um novo ciclo.
É a esperança que renasce em nossos corações.
É começar do zero novamente.
E que este recomeço de ano, te proporcione amigo, muita Paz, Sáude, Alegria e Amizades!
Seja bem vindo!
Com seu lindo trabalho!
Nos presenteando com seus mágicos contos!
Obrigada!
Um abraço, amigo!
Tudo de Bom pra você!
Gislene.
ROLANDO
ResponderEliminarESTOU FICANDO PERITA EM CHEGAR ATRASADA...ÁHÁHÁHÁH...MAS CHEGUEI.
NESTE MOMENTO TODO O MUNDO JÁ COMENTOU E TUDO OU QUASE TUDO FOI DITO, ESTOU AQUI SENTADA NA MADRUGADA VOS OUVINDO,E IMAGINADO TODO O MUNDO Á VOLTA DA FOGUEIRA COMENTANDO, EU ESCUTO....
AMIGO, QUE BOM É TERMOS TUAS HISTÓRIAS DE VOLTA!UM ABRAÇO TAMANHO DO MUNDO DESTES TEUS AMIGOS Á BEIRA MAR PLANTADOS....