segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O carteiro Infeliz

José Maria da Conceição Infeliz. Peculiar nome, sem dúvida... mas real, tão real como o dia em que nascera, 29 de Fevereiro de 1932, ano bissexto, na pequena povoação de Casal Batista, algures na serra da Lousã, paredes meias com o rio.

A própria história de tão original nome seria digna de um conto – mas não, não é esse o tema destas linhas, apesar de apetecível. O senhor Infeliz, quase nos oitenta, era um manancial inesgotável de peripécias, aventuras, histórias rocambolescas, acasos e coincidências, dificilmente repetíveis num qualquer outro ser humano. E no entanto, o nosso protagonista exercia a mais pacata das profissões, horas a fio ao pedal da sua bicicleta vermelha, sacola a tiracolo, distribuindo pacotes e sorrisos.

O senhor José Maria da Conceição Infeliz… era carteiro. Mas não, não fiquem a pensar num daqueles carteiros modernos, sempre apressados para terminar o giro, correndo a distribuir a publicidade de porta em porta. O senhor Infeliz distribuía cartas… e tinha um dom, um dom especial na ponta dos dedos que o tornava único.

- Dona Zulmira, que prazer em vê-la – lá ia cumprimentando – está cada vez mais nova…

E a dona Zulmira, rondando os setenta, sorria-lhe embevecida, mesmo quando ele nada tinha para lhe entregar. Sim… porque ali, na aldeia de Porto do Carro, onde o nosso carteiro prestava serviço, a maioria das cartas limitava-se aos cheques das pensões, às contas da água ou luz que todos preferiam nem receber… ou a algum primo emigrante que escrevia da Suiça, a contar as novidades. E o senhor Infeliz, com a sabedoria que a prática da profissão confere, já sabia de antemão a reacção de cada um, ao receber as suas cartas.

- Olh’o nosso Alfredo… tem aqui carta para si, ó homem… e pelo perfume devem ser boas noticias…

E deixou-lha nas mãos, ficando a vê-lo rir-se. Era bom homem, o senhor Alfredo, provavelmente a carta era da mulher, a padeira da aldeia, que fora visitar o pai doente, lá para os lados de Braga.

Acenou-lhe um adeus e lá continuou descendo a rua, em direcção ao café da praça.

- Zé Maria, Zé Maria… não há nada para mim?

O carteiro nem precisou de se virar, a voz inconfundível da menina Aurora dispensava apresentações.

- Hoje nada, menina Aurora, hoje nada… tenho a certeza que chegará amanhã…

Claro que não chegaria, mas isso não estava na sua mão. A menina Aurora, para além de impaciente, era uma incorrigível gastadora, conseguindo esbanjar a parca pensão mensal na primeira semana. Claro que logo a seguir encetava aquela ladainha diária, suspirando pelo dia da chegada do cheque seguinte… que nunca mais chegava.

- Cabo Martins… a factura da luz… - e mais uma carta entregue.

O cabo Martins, que prestava serviço em Leiria, lá torceu o nariz, resignado.

- Zé Maria… você só me entrega cartas tristes, já viu? Não tem para aí nada mais engraçado? Só facturas ?

O carteiro ria.

- Ora, ora… então se você não escreve a ninguém… está à espera que lhe escrevem a si, é? A que propósito?

Lançou a mão ao saco. Ah… a sensação era agradável. Sim… podia sentir… boas noticias. A senhora Matilde ficaria radiante… um novo netinho, noticias da filha…

- Dona Matilde, será rapaz ou rapariga? – e deixou-lhe cair o envelope nas mãos, com um sorriso.

- Oh, Zé Maria, como é que você sabe? Consegue adivinhar o que está cá dentro escrito, é isso? Você é bruxo?

O bom do Zé Maria ria, os olhos alegres que nunca acompanharam a idade do corpo.

- É um palpite, dona Matilde, é um palpite… e creio que será uma netinha…

E avançou mais umas pedaladas, rumo à praça. Tempo mais que suficiente para ainda a ouvir rasgar apressada o sobrescrito e gritar do cimo da rua : “ Chama-se Isabel, Zé Maria… a minha netinha vai chamar-se Isabel… “

Pois claro que se chamaria Isabel, lindo nome. Não precisava de abrir as cartas para lhes sentir o conteúdo, é verdade. E se no principio achara isso estranho, quase doentio, o certo é que agora até se deleitava com o prazer de entregar boas noticias, cartas de saudades, cartas de amor, cartas de amigos distantes. Também é verdade que de vez em quando as noticias não eram tão boas e custava-lhe… custava-lhe bastante sentir a dor ao segurar o envelope branco e ter que sorrir, disfarçando, enquanto entregava uma carta a alguém – o falecimento de um parente, um azar do negócio, um acidente, enfim… um dos muitos imprevistos da vida.

Tocou a pequena campainha da bicicleta.

- José António… venha cá à minha beira… tem aqui uma carta registada… venha cá assinar o papelinho…

O dono do café lá interrompeu a limpeza das mesas da esplanada, atirou a toalha sobre o ombro e resmungou qualquer coisa inaudível, parecida com um bom dia.

- Outra multa, com certeza… o que terei eu feito desta vez?

Lá lhe deixou o envelope, bastante pesado por sinal. E o José António tinha razão, era mesmo uma multa. Para a próxima, que não tivesse o pé tão pesado no acelerador, a caminho de Leiria.

Lançou de novo a mão ao saco.

Sem ver, sentiu que a carta era dirigida à viúva Deolinda, que infelizmente talvez já nem a conseguisse ler, tão doente se encontrava.

De hospital em hospital, doença prolongada, radioterapia, quimioterapia, experiências, novos fármacos… e finalmente, o regresso a casa, para passar na paz possível os últimos dias de vida.

Era boa pessoa, a viúva Deolinda – modista de profissão, e das boas. Metade da aldeia vestira os seus trajes de domingo saídos daquelas mãos habilidosas, uma bordadeira por excelência. E, apesar de ainda não ter tocado os setenta, a doença. O fim anunciado.

O filho, moço escorreito e com ares do pai, era militar, ausente no estrangeiro numa daquelas missões de paz que a dona Deolinda não compreendia muito bem. Preferia que o filho prestasse serviço ali mais perto, porque não em Leiria, ou até mesmo em Lisboa… mas ele dizia-lhe sempre que no estrangeiro ganhava mais… e que não corria perigo nenhum, nem sequer ainda disparara um único tiro.

A dona Deolinda acalentava a secreta esperança de ainda ver o filho… uma última vez.

O senhor Infeliz parou a bicicleta, o sorriso momentaneamente ausente. A carta… a carta continha mais qualquer coisa… e não era coisa boa… bem pelo contrário… notícias sim, mas más notícias, péssimas notícias.

Pelo remetente, adivinhou todo o conteúdo, mesmo sem abrir o sobrescrito.

Por um longo momento, passou as mãos sobre o envelope, angustiado.

Numa folha branca, cheia de carimbos e selos oficiais, alguém dizia de forma lacónica que Hélder de Jesus Monchique, o filho de dona Deolinda, morrera ao serviço da pátria, na missão de manutenção de paz que cumpria no estrangeiro. Apresentavam-se condolências, disponibilizava-se ajuda psicológica à família, enviavam-se as minutas dos formulários necessários a toda a burocracia.

E agora?

Como entregar a carta, sabendo de antemão que dona Deolinda esperava ansiosamente o regresso do filho, agarrada a essa esperança, talvez como o último balão de oxigénio, antes de finalmente poder descansar em paz?

- Então Zé Maria? Descansando em serviço? Estás a ficar velho…

O senhor Infeliz nem lhe respondeu, pela voz reconhecera logo o Matias, o eterno bem disposto e contador de anedotas da aldeia. Acenou-lhe simplesmente um gesto distraído, os dedos a queimar sobre o envelope branco.

Precisava de fazer algo.

Não era a primeira vez… e naquele momento sentiu que afinal… afinal talvez existisse um motivo, um propósito, uma razão maior para aquele seu dom de sentir com a ponta dos dedos… o conteúdo das cartas que entregava todos os dias.

Porque o seu dom… e só o fizera uma vez, uma única vez em toda a vida… ia um pouco mais além daquele simples sentir.

José Maria da Conceição Infeliz… podia fazer algo mais… e naquele momento, sabia que o deveria fazer.

Recordou que ainda no mês anterior não pudera entregar uma carta, precisamente do filho da dona Deolinda, porque havia ficado retida na central de distribuição; aparentemente um problema menor de falta de selos, ou em quantidade insuficiente. Chegara a tê-la nas mãos, sentira-lhe o conteúdo, uma carta alegre com duas fotografias do Hélder e dos amigos, bebendo cervejas num qualquer bar. Sabia que inclusivamente dizia à mãe que lamentava imenso não poder vir a casa pelo Natal, mas que ela não se preocupasse, pelo Carnaval viria visitá-la, com toda a certeza.

Sabia o que tinha que fazer.

Voltou a colocar a fatídica carta dentro da sacola e recomeçou a pedalar, em direcção à casa da dona Deolinda.

Bateu à porta e apareceu a vizinha do lado.

- Olá, Zé Maria… - cumprimentou ela – trás carta para a Deolinda?

Ele colocou o mais alegre dos sorrisos.

- Claro que trago. E são boas notícias para a nossa menina. Como está ela hoje?

A vizinha abanou a cabeça.

- Pior, Zé Maria, pior…

- Vá, não se preocupe… vá lá levar-lhe esta carta, vai ver como ela ficará logo outra…

E levou a mão à sacola, retirando o mais vulgar dos envelopes. Vulgar, excepto talvez pelo facto de não ter selos.

- Dê-lhe cumprimentos meus, está bem?

A vizinha acenou novamente e ficou a vê-lo partir, pedalando de novo rua acima.

O senhor Infeliz não queria olhar para trás.

A carta entregue – feita a troca – não salvaria a dona Deolinda, é verdade. Mas pelo menos não lhe retiraria tão cruelmente a paz e a esperança e afinal, como dizem… não é a esperança a última coisa a morrer?

A dona Deolinda morreu dois dias depois, uma semana antes de o senhor Infeliz tirar de novo da sacola a carta, cheia de carimbos e selos oficiais.

E pela segunda vez em toda a sua vida, José Maria da Conceição Infeliz sentiu-se o mais feliz dos homens, por poder reescrever o presente, sem alterar o futuro.

8 comentários:

  1. Fantástico! Já tinha saudades das tuas histórias... e hoje brindaste-nos com mais uma licao de vida! Pena é que nem todas as pessoas tenham o dom do Sr.Infeliz, mas bom é o facto de existirem alguns nas nossas vidas!

    Aparece no meu novo cantinho http://cronicasdemuniqueealgomais.blogs.sapo.pt/

    Fico á espera de uma visita tua e de quem mais quiser aparecer...

    Beijinhos

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  2. Já só na nossa memória existem carteiros assim.

    Mas adorei.

    Está cada vez melhor a reinventar personagens.
    Parabéns

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  3. Sara, Dida... que bom ver-vos de novo. É verdade, também eu gostava de tropeçar num senhor Infeliz, muitas e muitas vezes...
    Sara, vou já visitar o novo espaço.
    Dida, obrigado...

    Até já, amigos...

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  4. Que bom se, de vez em quando, pudessemos alterar o curso das nossas histórias pessoais ou de quem nos rodeia! Uma espécie de anjo da guarda disfarçado de carteiro!

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  5. Todos temos esse poder, o poder de com um pequeno gesto virara uma vida.. nem que seja por momentos, a maioria de nós não tem a lucidez suficiente para olhar para a vida e os seus detalhes e por norma deixamos passar o momento....

    O teu Sr Infeliz era um homem atento aos detalhes da vida..e tu estás cada vez mai um enorme narrador.

    Abraço Rolando
    Jorge

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  6. QUE ESTE 2011, QUE CHEGOU NO MEIO DO FRIO E CHUVA, NOS TRAGA SIM UM SOL DOURADO, QUENTINHO, E UM CÉU AZUL.....E MUITOS SORRISOS...
    Que bom seria amigo, que de vez enquando tivesse-mos nas nossas mãos, e dedos, a magía de tornar vida menos pesada, e mais feliz a todos que amamos,e áqueles que mesmo sendo desconhecidos não gostamos de os vêr sofrer.
    Cheguei com os bolinhos Algarvíos, para acompanhar o café quentinho,enquanto sonhamos em ter mãos mágicas.
    Gostei de voltar aqui ao nosso cantinho...
    Beijosssssssssssssssss

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  7. Teresa, sabes... acredito mesmo nisso que acabaste de escrever... disfarçados de carteiros ou de outra máscara qualquer...

    Tudo de bom para ti.

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  8. Jorge amigo, acredito no que dizes, todos temos esse poder e, sabes que mais? Acredito também que por preguiça muitas e muitas vezes não o utilizamos...

    Um abraço, amigo.

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