Havia algo de distante, naquele olhar.
Serena e imóvel, o mundo deslizava-lhe ao lado, como se de uma brisa se tratasse; um leve afagar dos longos cabelos – quando muito – fazia sentir que o tempo decorria. Nada mais.
As águas do lago, sulcadas pelos rastos dos cisnes, reflectiam-lhe o azul dos cabelos, um tom perdido entre o céu sem nuvens e a cor do mar.
O raiar da manhã encontrara-a já ali, sentada naquele mesmo banco de madeira velha, levemente inclinada sobre o lago. Os transeuntes habituais chegaram e partiram, as crianças atiraram pedacinhos de pão para as águas, um ciclista distraído pisou a relva verde. Nada de anormal, nada de extraordinário, simplesmente uma manhã como todas as outras, num dos jardins do centro da cidade.
Fora dos muros entrelaçados de musgo e trepadeiras secas, a cidade galopava freneticamente, num rodopio também ele normal. Os táxis apressados, pegando e largando gente atrasada, os autocarros amarelos dobrados pela carga excessiva, os estafetas gingando entre os peões… até um vendedor ambulante, montando à pressa o seu balcão de hamburgers e sanduíches.
Um dia de trabalho normal, sem dúvida.
Para Mina Yin aquele não era contudo um dia normal.
Quando - muitos anos atrás – virara costas à casa paterna e rumara à grande cidade, levava na bagagem um mundo de sonhos e – sobretudo – a vontade indomável de os realizar. Contrariando tudo e todos, batera com a porta, impaciente para tocar com os dedos um destino que acreditava estar à sua espera, na cidade das luzes.
E… como se não bastasse a memória da partida… existia ainda uma outra memória, a da primeira e única vez que o pai levantara a mão contra ela, punindo-a pela insolência das palavras, na troca de argumentos acesos da despedida.
Fora a gota de água – as palavras transbordaram-lhe do peito, disse o que nem sequer algum dia pensara ou sentira. Mas disse-o. E virou-lhes as costas, batendo com a porta da maneira mais arrogante que conseguiu.
Cinco anos… quase seis anos se haviam passado entretanto.
Não encontrara a cidade dos sonhos… nem o arco-iris da abundância. Fez de tudo um pouco para sobreviver, saltou de emprego em emprego – qual deles o mais precário – calou a consciência e vendeu tudo o que tinha para vender, mendigou, chorou, gritou de raiva e de remorso… mas não voltou a casa. Uma teimosia cega, só comparável ao orgulho infantil de nunca voltar atrás, obrigava-a a prosseguir, mesmo quando o destino se confundia com o abismo.
Mil vezes ignorou os telefonemas da mãe,
É verdade que em muitas noites chorou, resistindo à tentação de pegar o primeiro comboio e voltar a casa.
Na noite anterior, o irmão telefonara-lhe.
Ela estranhou o tom sério da voz, habitualmente alegre e contagiante. Mas nada havia de alegre na noticia, nem modo mais leve de a transmitir. Os temporais – sim, os noticiários não falavam de outra coisa – as terras instáveis, os deslizamentos, as inundações.
Recusou-se a acreditar quando o irmão falou. Pediu-lhe para repetir. E ainda outra vez.
Mas por mais que ele o repetisse, a força das palavras não diminuía e ela sentiu de repente o peso do mundo a esmagar-lhe o corpo. Deixou de respirar.
O irmão repetia novamente – sim, era verdade, a aldeia fora bastante atingida pelos temporais, muitos desalojados, pessoas desaparecidas, arrastadas pela fúria das águas… e os pais… um deslizamento de terras na encosta, a casa de família soterrada, os dois corpos encontrados no dia seguinte, sob o entulho desfeito do que em tempos fora uma casa… um lar.
Mina Yin permaneceu imóvel, o olhar ainda perdido na superfície das águas.
Por muito tempo – demasiado tempo – adiara o regresso, adiara a reconciliação, adiara tudo. Um turbilhão de sentimentos – raiva, desespero, tristeza, impotência – assaltou-lhe o espírito, não conseguia pensar.
A sensação de “ser tarde, ser demasiado tarde para qualquer coisa” gelou-lhe o sangue. As palavras era inúteis, como inútil era o remorso ou a vontade infantil de pedir ao tempo que voltasse atrás.
O tempo não volta… não redesenha o passado, não rabisca o futuro. O tempo passa simplesmente, como simples tapete, espectador atento dos pequenos dramas que sobre ele se desenrolam.
Uma frase – ironicamente dita pelo próprio pai, muitos anos antes – queimava-lhe a garganta, ansiosa por brotar nos lábios.
“ Filha… não te despeças de ninguém com raiva ou ira. Nunca sabes ao certo se terás a oportunidade de a voltar a ver… ou de te reconciliares com ela “
Mina Yin.
Uma lágrima teimosa assomou-lhe no rosto, em silêncio.
Parecia azul, uma lágrima azul.
Mas talvez fosse simplesmente o reflexo dos seus cabelos azuis, ou um pouco de céu triste, caindo em flocos sobre o lago.
Bom dia, uma história tão triste quanto bela, faz pensar quantas histórias de vidas foram ou são similares á de Mina Yin.
ResponderEliminarGostei sobretudo da frase «não te despeças de ninguém com raiva ou ira. Nunca sabes ao certo se terás a oportunidade de a voltar a ver… ou de te reconciliares com ela», para reflectir!
Abraço ^^
nossa, que historia linda, dessas que a gente vai lembrar para sempre
ResponderEliminarbjs
Rolando é isso mesmo, tu passas aquilo que é importante, não só para reflectir, mas para consciencializar e interiorizar cá dentro mesmo, abrir esse coração e não deixar que ele absorva ou acumule rancores, ódios, raivas, orgulhos e dissabores... saber perdoar, aceitar as derrotas, cair e levantar de novo é um desafio, mas com AMOR, tudo se consegue. Quando existe amor no coração, nada nos impede de afastar a tristeza de um dia!!..
ResponderEliminarBeijokas e bom fim de semana
Paulo,
ResponderEliminarOcorreu-me que as despedidas por vezes... são mais duradouras do que imaginamos. E quando penso em como tudo isto é tão efémero...
Um abraço.
Oi, Cris, que bom ver-te por aqui.
ResponderEliminarNada de despedidas. Simplesmente um "até já", ok?
Beijos.
Libel, amiga...
ResponderEliminarVerdade... o amor, essa tal força "poderosa"... que tenta mover montanhas, que faz perdoar, tentar, levantar... tudo o que bem disseste.
Há que pensar melhor quando nos despedimos de alguém, não é?
Beijos, e vê se descansas, ok?