Um uivo.
Baixo, prolongado, anunciando o nascer do sol.
Do outro lado do vale, a alcateia preparava-se para mais um dia de sobrevivência, caçando, alimentando as ninhadas, vigiando, demarcando os limites do território.
Lippi, a pequena loba de pelo pardo, observava-os em silêncio, protegida pela camuflagem dos arbustos rasteiros.
Naquele dia, não acompanharia o resto do grupo nas tarefas habituais…
Levantou o focinho e sorveu ávida o ar frio da manhã.
Não… ainda nada de novo, simplesmente os odores habituais e conhecidos, o aroma adocicado dos pinheiros e acácias, o cheiro da terra ainda húmida pelo nevoeiro da manhã.
Esperaria, continuaria a esperar…
Ao longe, conseguiu distinguir a sua cria, bem no centro do grupo, aos saltos e nas brincadeiras características da juventude. A sua terceira cria.
As duas primeiras haviam já abandonado o grupo, criando as suas próprias famílias. Não as voltara a ver, desde o dia em que – primeiro uma, logo depois a outra – as vira partir acompanhadas de dois jovens lobos cinzentos, em direcção à montanha.
O ciclo de vida repetia-se assim, sem necessariamente outra lógica ou razão senão a da continuação da espécie, ano após ano, o inverno das neves a dar lugar à primavera das flores e ao transbordar dos rios, ao verão e à chegada dos ursos, ao Outono e ao ritual do acasalamento, da partida das crias mais velhas para fundar novas alcateias, algures na imensidão da floresta.
O eterno ciclo da vida.
A sorte não bafejara a pequena Lippi, de pelo pardo, ao longo da sua já longa vida.
Se era verdade que os lobos eram sobejamente conhecidos pela constância, pela permanência, pela vida familiar sólida e fiel… também era verdade que Lippi nunca usufruira de todas essas benesses da espécie.
Muitos anos atrás, também ela abandonara o conforto da sua própria família e acompanhara um jovem lobo branco, atravessara a floresta e criara a sua própria família. Desses tempos, guardava a marca de muitas dentadas no pelo e a falta de um pedaço da orelha, arrancada pelo companheiro furioso.
Os lobos têm boa memória, diz-se.
Talvez por isso mesmo lhe fosse tão difícil lembrar como sofrera tanto, ao longo de tanto tempo, sem nunca soltar um queixume, sem fugir, continuando pacificamente a sujeitar-se a um vegetar silencioso, gerando crias, acompanhando o lobo branco por montes e vales.
Um dia… algo aconteceu.
Um lobo castanho saltou-lhe ao caminho, junto do ribeiro onde habitualmente bebia.
Nunca o vira por aquelas paragens, habitualmente desertas.
Rosnou de sobreaviso, mas o intruso não se afastou. Pelo contrário, abanou simplesmente a cauda, sentou-se bem no meio da vereda a barrar-lhe a passagem e soltou um ligeiro uivo, quase como um cumprimento desajeitado.
Ela olhou-o nos olhos e reviu-se a si própria, num tempo distante em que o olhar tinha um outro brilho, os passos eram mais seguros, a confiança maior.
Voltou a rosnar, para afastar o intruso.
Ele respondeu-lhe com novo uivo.
Se fosse humano, dir-se-ia estar a sorrir.
Rufus, o lobo castanho, percorria ele próprio caminhos desconhecidos. Abandonara a sua alcateia, vagueara pelos montes em busca de algo que nem sabia explicar. Sentira um chamamento e dirigira-se aquele local, sem saber o que iria encontrar; sabia simplesmente que precisava de se dirigir ali.
O tempo passou.
Uma estação, duas estações, um ano.
Lippi e Rufus tornaram-se próximos, estranhamente próximos.
Sem o fazer de propósito, davam os mesmos passos, adivinhavam os pequenos gestos um do outro, sentavam-se em simultâneo, tropeçavam nas mesmas pedras. Ele lambia-lhe o pelo pardo, amenizando-lhe as recordações das feridas, ela enroscava o focinho no pescoço dele, fazendo-o uivar de prazer.
Um dia, bem pela manhã, ele caçou um pequeno coelho e foi depositá-lo junto dela, acordando-a com um suave empurrão. Ela uivou, ronronando de prazer, nada habituada a gestos ternurentos.
Eram felizes.
Perscrutou novamente em redor.
Nada, ainda nada.
Só e ainda os habituais odores.
Esperaria…
Certo dia, acordou em pânico, sobressaltada pelos uivos de dor e pelo ruído de uma luta próxima. Correu.
Junto do ribeiro, o lobo branco – bem mais habituado a lutas de posse pelo acasalamento - massacrava o lobo castanho, arrancando-lhe pedaços de carne. Este ripostava como podia, contra-atacando… mas sem grandes resultados. O lobo branco, bastante mais velho e experiente, contornava-lhe as manobras, atacava de frente, pelos lados, por trás, movendo-se velozmente.
Num impulso, Lippi atirou-se para a frente, dando o corpo.
O lobo branco, enfurecido pela presença da companheira, saltou sobre ela, dilacerando-lhe num ápice o pescoço com as garras afiadas.
O sangue jorrou.
Lippi insistiu.
E novamente recebeu mais dor e sangue.
Até uma última patada a deixar prostrada no chão, sem sentidos.
Quando acordou, banhada em sangue, estava sozinha.
O lobo branco desaparecera, do lobo castanho restavam tufos de pelo e pedaços ensanguentados de carne, arrancada em furiosas dentadas.
Uivou.
Com toda a força que o corpo magoado lhe permitia.
Uivou de dor, de solidão, de tristeza infinita.
Uivou de raiva pela injustiça da vida, por se sentir fraca e desamparada, por querer… e não ter.
Os seus lamentos repercutiram-se nas encostas da montanha, prolongados em ecos que mais ninguém ouviu. Só ela.
As feridas sararam, a dor permaneceu.
Dia após dia, dirigia-se ao mesmo local, sentava-se e ali permanecia em silêncio… à espera. À espera de um sinal, de um reencontro, de um som, de um odor.
Nada, desesperantemente nada.
Sentiu-se morrer por dentro.
E nada podia fazer para o evitar.
Sem querer, uivou baixinho, como se falasse para si própria.
E foi então que… lhe pareceu ouvir algo.
Ergueu-se de um salto, rosnando ameaçadora em direcção à vegetação cerrada, donde lhe parecera ter saído o som.
Fosse o que fosse – mesmo um urso – sentia-se demasiado fora de si. Apetecia-lhe rasgar com os dentes o mundo inteiro, carpir todas as mágoas, e pobre do animal que agora lhe aparecesse pela frente, fosse ele qual fosse.
Os arbustos agitaram-se ao de leve, o ruído característico das folhas secas pisadas.
Uma figura frágil, arrastando uma das patas, assomou na vereda.
Rufus.
Um uivo.
Lippi acercou-se pé ante pé, sem acreditar completamente no que via.
Ele escorregou e deixou-se cair bem aos pés dela.
As forças não chegavam para mais.
E novamente, Lippi uivou.
Um uivo diferente, como nunca soltara em toda a sua vida.
Um grito rasgado de dentro, de convicção, de querer, de vontade indomável.
Fora fraca um dia, não o voltaria a ser novamente.
Sentou-se sobre as patas traseiras, lambendo-lhe o pelo sujo e pejado de espinhos.
Os olhos brilhavam-lhe, um brilho quase esquecido.
Esfregou o focinho no pescoço dele, à espera de um rosnar de prazer. Ele, demasiado ferido, esboçou um leve uivar, que mais se assemelhava a um latido de dor.
E trocaram um olhar.
Um longo e cheio de sentidos olhar.
Não era preciso dizer nada, fazer nada.
Ambos sabiam.
Ambos queriam.
Isto é amor. :)
ResponderEliminarBeijinhos
Ah, Joana... sim... creio que sim.
ResponderEliminarBeijos, tudo de bom para ti.
Há vidas humanas que não têm tantos gestos de ternura como esta história com lobos. Talvez porque os humanos não saibam uivar baixinho.
ResponderEliminarAbraço.
António R....
ResponderEliminarVerdade, pura verdade. Talvez que a ternura ( talvez? Sim ) seja a chave para muitas coisas... e talvez que nós humanos... não saibamos uivar baixinho, simplesmente gritar..
Um abraço.
Rolando,
ResponderEliminarComo "Lippi" eu esperei um longo tempo para dar: "Um grito rasgado de dentro, de convicção, de querer, de vontade indomável." Que prazer, voltar a ler os teus textos! Sentir a ternura e a beleza em cada palavra que escapa do teu coração. Ah, meu amigo, como fizeste falta!
Lindo, terno e amoroso, esse teu conto! Pena que sejamos só humanos nessa selva que chamamos de solidão. Temos tanto que aprender com Lobos!