- … Mas que idade tem você? Desde que me lembro, sempre a recordo assim… você não envelhece?
Ela deixou-se rir, a cabeleira grisalha a ondular ao vento.
- Ora essa, Jonas… nem parece seu… e desde quando se pergunta a idade a uma senhora?
Ele levou a mão ao pequeno saco de flanela vermelha e retirou um par de amendoins torrados, que num ápice fez desaparecer na boca.
- É verdade, é verdade… nunca se pergunta… mas que quer? Eu sempre tive esta curiosidade… e recordo sempre a sua imagem e claro… essa sombrinha.
- Ahh, a sombrinha… a minha sombrinha cor-de-rosa?
- Exactamente… - e ele observava-a com atenção – aliás, nunca a vi sem ela, ao longo de todos estes anos… sempre juntas, sempre inseparáveis…
Ela lançou-lhe um ar cândido, as rugas dos olhos desdobradas num sorriso que a idade adocicara.
- Ora, Jonas… coisas de mulheres, você já devia saber que todas temos as nossas manias… você também tem…
- Eu? Essa agora… claro que não tenho…
- Ah isso é que tem… que eu também já o conheço há muitos anos… e esse saquinho de flanela, cheio de amendoins… o que é?
Ele resignou-se a um sorriso, qual criança apanhada com a mão no doce proibido.
- Amendoins… simplesmente amendoins, sou um guloso….
- Pois… sim… vou fazer de conta que acredito… como se eu não soubesse que anda sempre por aí a distribuir amendoins… como se fossem trevos de quatro folhas…
Jonas, pois assim se chamava o nosso homem dos amendoins, esticou o braço na direcção da mulher, a palma da mão aberta numa oferta de um punhado daqueles pequenos objectos cor de caju, estaladiços.
- Íris… você é terrível, uma pessoa já não pode oferecer inocentemente alguns amendoins que até você repara logo… e a propósito… quer um? São deliciosos…
Ela declinou amavelmente.
- Não sou só eu que reparo nestes pormenores – e espetou o dedo indicador para o alto – já ouvi uns rumores que você tem sido bastante elogiado… lá em cima…
Ele quase se engasgou.
- Íris… ok, ok… numa coisa dou-lhe razão, cada um com as suas manias… mas que quer? Habituamo-nos a fazer as coisas de um determinado jeito, não é? Tal como você e a sua inseparável sombrinha cor-de-rosa…
- Sim.. a minha sombrinha…
- Vá… conte-me lá… aqui de colega para colega… como é que faz? Para que serve exactamente a sombrinha cor-de-rosa?
Íris, olhos verdes e farta cabeleira grisalha, roupa de cigana a fazer lembrar os tempos em que ser hippie era também uma forma de vida. Meia idade, talvez mais, quase nos sessenta, pele tisnada de muito sol, sandálias de couro nos pés e… aquela sombrinha cor-de-rosa na mão.
- A minha sombrinha… para que serve a minha sombrinha, quer você saber… pois bem, eu conto-lhe… se prometer não revelar o meu segredo… a mais ninguém…
Jonas, o eterno homem dos amendoins, abriu os olhos de incontido espanto.
- Claro que não revelo, ora essa… um segredo é um segredo…
- Pois a minha sombrinha… - lá começou ela – é mágica, tal como os seus amendoins.
Ele ficou á espera da continuação… mas como Iris se limitasse a observá-lo, não resistiu.
- Não entendi… como pode ser uma sombrinha cor-de-rosa… mágica?
- Oh, Jonas… claro que pode… então como faz com os seus amendoins? Serão eles também mágicos… ou é você que faz a magia, de cada vez que anda aí pelas ruas, a ajudar estes humanos insensatos que nos rodeiam? Pois com a minha sombrinha… passa-se a mesma coisa, exactamente a mesma. Limito-me a abrir a sombrinha sobre as pessoas… e o resto é magia.
- Só abre a sombrinha? Mais nada? Nem um “Plim-plim”, “ abracadabra” ou umas palavras assim baixinho, numa linguagem qualquer esquisita? Nada?
Ela abanou a cabeça, sorridente.
- Nada… rigorosamente nada. Digo-lhes simplesmente que a sombra da minha sombrinha cor-de-rosa é mágica… e que os banha de magia… o resto… vem por acréscimo…
Jonas ainda ia acrescentar algo, mas um trovão distante, anunciando uma tempestade eminente, fê-lo mudar de ideias. Conhecia bem os sinais… e o respectivo significado.
Íris também os conhecia.
- Creio que Alguém nos está a dizer que já chega de conversa… e que é hora de entrarmos ao serviço…
Riram-se, um sorriso cúmplice ao canto dos lábios.
Afinal… a missão era a mesma, fossem os instrumentos um saquinho de flanela vermelha cheio de amendoins ou uma sombrinha cor-de-rosa.
- Hoje vou para norte – despediu-se ela – e você, Jonas?
- Para sul… durante toda esta semana, para sul….
Ficou a vê-la afastar-se, a saia larga a fazer lembrar uma delicada sacerdotisa, o passo ligeiro e as mãos a segurar inutilmente os longos cabelos contra o vento.
- Íris… - ainda gritou – só uma coisa…
Ela virou-se para trás, sem se deter.
- A sombrinha… porque a cor? Porquê cor-de-rosa?
Ela riu-se, um riso cristalino que lhe chegou límpido e com a cor de uma cascata de água fresca.
- Oh, Jonas… então de que cor haveria de ser? Os anjos também têm sexo… não têm?