Por vezes – tantas vezes – a realidade assumia no baú das memórias um peso tão incerto quanto o da fantasia; simples flocos de algodão doce.
O ontem, enquanto sinónimo de passado… travesti de sonhos desejados. O que era a realidade, senão o conjunto de todas as coisas que ele decidira aceitar como reais, verdadeiras? Ele decidira… simplesmente isso, ele decidira.
Fechou os olhos à espera do soar da primeira badalada.
Por vezes… tinha uma certa dificuldade em separar o que – no passado já vivido – realmente vivera, confrontado com a ficção de todas as personagens que já encarnara, confundido com todos os papéis que já declamara, as histórias que inventara, as pessoas de carne e osso que desenhara.
Em sonhos tão reais como dias de sol, viajara até aos confins do mundo, abraçara mil profissões, vestira todos os rostos e encenações de humano insatisfeito, criativo e… ingénuo.
A primeira badalada não o fez estremecer. Tampouco a segunda.
- Lembras-te de uma noite fria – também de aniversário – em que pegaste na tua bicicleta e me disseste: “ É hoje que vou ensinar-te a andar de bicicleta” . Lembras-te?
Ele sorriu em compasso com a terceira badalada.
Lembrava-se sim.
Eram adolescentes, colegas de escola… e ela ousara confessar-lhe não saber andar de bicicleta.
- Impossível – respondera ele, atónito – todo o mundo sabe andar de bicicleta.
E após uma ligeiríssima pausa, contrapusera:
- E lembras-te tu daquele dia em que, pensando nós estar sozinhos na praia, descansados, rodeados de gente desconhecida, namorando tranquilamente… fomos surpreendidos por uma gritaria imensa e de repente, surgidos sabe-se lá de onde, apareceram todas as nossas filhas e netos, por uma mera coincidência, juntos todos no mesmo local, numa praia tão grande?
- Se me lembro… para além do embaraço, apanhei um susto…
Dez… Onze… doze badaladas.
Só mais um segundo, mais um virar de página, um dia mais, um ano mais.
- Parabéns, meu amor… agora já te posso chamar de octagenário…
Ele riu-se, correspondendo ao beijo apaixonado da companheira de muitos anos.
Quem os visse ou ouvisse assim… aceitaria todas aquelas recordações com a condescendência de uma vida bem vivida, repleta de peripécias e momentos de partilha, de pequenas cumplicidades.
Como poderia alguém suspeitar que nada aquilo acontecera realmente?
Ele nunca a ensinara a andar de bicicleta, tal como nunca partilhara os bancos da escola com ela, haviam-se conhecido já bem adultos. Nunca haviam sido surpreendidos pelas filhas ou netos na praia, tal como muitas outras peripécias narradas com a emoção real de quem viveu cada segundo daquele passado fantasiado.
Sempre assim fora, entre eles os dois.
A divagação de um deles era o rastilho imediato para o deleite do outro.
Ou seria simplesmente o polvilhar da realidade com salpicos de algodão doce?
Não.
Aquela… parte ficção, parte realidade, era a realidade por inteiro, fazia parte das memórias de ambos, existia como o declamar de um texto em palco, cada um deles bem ciente das suas deixas.
Aquele passado, real ou imaginário… era deles… e só deles.
- Olha… sabes uma coisa? E se bebêssemos uma ginginha para celebrar?
- Uma ginginha? Ai o que tu me foste lembrar… a primeira vez que provámos uma ginginha… oh… ainda te lembras onde foi, ainda te lembras?
- Claro que me lembro… até me lembro do que tu vestias naquele dia… e vais ver que não me engano…
E lá foi desfiando mais um rol de memórias que para vocês, amigos leitores, serão tão reais como as palavras deste texto.
E para eles, as personagens desta história parte real, parte ficção… também.
Afinal... a quem mais importa a verdadeira realidade das coisas... senão a quem a vive?