quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Reclamação


- Tem um cigarro, amigo?

- Não… já me deixei disso faz tempo… e você devia fazer o mesmo…

O outro afastou-se, procurando novo alvo, com a expressão típica de quem queria simplesmente um cigarro, sem lume ou conselhos incluídos.

Estava no seu direito.

Abriu de novo a porta de vidro e o bafo quente da sala de espera embaciou-lhe prontamente os óculos.

- Mas porque colocarão sempre isto no máximo? – resmungou com os seus botões – é sempre a mesma coisa…

Na verdade, era sim, era sempre a mesma coisa; a sala de espera daquele hospital não deveria destoar em nada de qualquer outra – abafada, com excesso de pessoas ansiosas e ruidosa, muito ruidosa.

Sentou-se a um canto, de frente para a televisão. Hora de noticiário; Egipto, violência, revolução, religião, política, carros incendiados, camelos e tanques – não necessariamente por esta ordem, mas a visão não era nova. Ao seu lado, uma mulher mastigava com uma cadência exasperante algo estaladiço, provavelmente um daqueles pacotes de fritos sortidos, acabados de retirar da máquina automática.

- Uma autêntica torre de Babel… - pensou.

Percorreu os rostos mais próximos, indagando-lhes as expressões; Um casal cansado, ele dormitando e ela remexendo nervosamente na mala, um par de crianças coradas pelo calor agarradas a uma consola de jogos portátil, um homenzinho meio coxo carregando furiosamente em todos os botões da máquina de café, sem reparar que a máquina lhe recusara a moeda introduzida na ranhura, uma adolescente teclando mensagens no telemóvel a uma velocidade vertiginosa, um bombeiro a tentar descobrir no guichet onde estava o seu doente.

- É favor fazer menos barulho, que eu não consigo ouvir as pessoas aqui ao guichet…

A funcionária do balcão das informações obteve uns segundos de silêncio, tempo suficiente para voltar ao seu local de trabalho e as pessoas novamente às suas conversas.

Consultou de novo o relógio – oito e quinze; ou seja… oito horas de espera, tendo em conta que chegara ali pelo meio dia, acompanhando o pai. Numa parede, uma folha plastificada anunciava que as pulseiras amarelas – a que haviam colocado no pai – significavam urgência… e com um tempo de espera previsto de uma hora. Enfim… o pai fora atendido duas horas depois… e as restantes seis correspondiam aquele tempo de espera… a espera de informações. E quem espera… desespera.

- Há algo de errado no meio de tudo isto…

Claro que havia algo de errado. Afinal de contas, tratava-se de um hospital público, distrital, sobrelotado. Quando pretendeu chegar à fala com um dos médicos de serviço levou com um “ o médico está com quinze doentes, não pode falar consigo”. Pois claro, se conseguisse seria um super-homem, um super-médico ou algo de semelhante. Mas o certo é que o pai lá continuava deitado numa maca, numa sala que nascera para observar três ou quatro doentes e onde se acotovelavam as quinze macas, num cenário de Dante, por entre gritos de doentes e gemidos de moribundos. Sim, sem dúvida… havia algo de errado no meio de tudo aquilo.

- Como? Não tem moedas? Então como é que posso utilizar a máquina?

- O senhor terá que se deslocar lá fora, talvez num café lhe consigam trocar algumas…

O homem que se dirigira ao guichet pousou a filha no chão, arrumando a carteira.

- Então as máquinas estão aqui… e vocês não trocam moedas? Tenho que ir lá fora para comprar uma garrafa de água para dar à minha filha, é isso?

- Não temos moedas, senhor. É uma empresa de fora que faz a manutenção das máquinas…

O homem pegou na filha ao colo e virou costas.

Ficou a vê-lo afastar-se, ultrapassar a porta de vidro e mergulhar no frio da noite.

Não.

Em definitivo… algo não estava mesmo nada bem.

Talvez fosse o calor excessivo, as oito horas de espera, o ruído de fundo que estrangulava os pensamentos, a irritação da insensibilidade, a televisão, os cheiros de suor e sujidade, os papéis no chão, os sacos de lixo a transbordar, a pose fleumática da funcionária ao guichet, a preocupação pelo estado de saúde do pai; talvez fosse tudo isso ou muito mais… o acumular de mil pormenores que de repente o fizeram sentir como um mero saco de batatas, encostado a uma parede.

Levantou-se e dirigiu-se ao guichet.

A funcionária lançou-lhe um olhar distante e pegou num formulário.

- Nome?

Ele esperou que ela erguesse de novo o olhar.

- Podia facultar-me o livro de reclamações, por favor?

A funcionária pousou a caneta, o livro, tirou os óculos.

- O livro de reclamações? Para quê?

- Pode facultar-me o livro de reclamações, por favor? Não preciso de lhe justificar o motivo… isso será aquilo que eu lá irei escrever…

A funcionária olhou para a colega do guichet ao lado, depois para o homem, depois para a parede e novamente para o homem.

- Sim… mas passa-se alguma coisa? Quer alguma coisa? Não precisa de …

- O livro… se faz favor…

A funcionária ergueu-se e lá foi ao armário respectivo, trazendo na volta o livrinho de capa vermelha.

- Eu vou chamar a chefe do serviço, se quiser…

- Não, não é preciso… basta que me faculte o livro… se faz favor…

Com movimentos hesitantes, lá o recebeu das mãos da funcionária. Abriu-o. Ainda intacto.

- Fantástico… ninguém reclama… - pensou - … será a primeira reclamação…

Pegou no livro, virou-se para a sala de espera e ergueu-o bem acima da cabeça, para que pudesse ser visto por todos. E então, falou:

- Vou preencher uma reclamação… pela falta de condições desta sala de espera e pelas coisas que tenho observado aqui, durante toda esta tarde. Alguém vai querer acrescentar algo aquilo que eu vou escrever?

Primeiro… o silêncio.

Por uns segundos, apenas.

O clamor de vozes que se seguiu abafou tudo.

- Eu, eu, eu… eu

- Eu…

- Eu também…

16 comentários:

  1. Por vezes basta uma centelha para fazer o mundo andar..e isso é válido para fazer aparecer manifestações, exércitos de tanques... ou a vontade de reclamar.

    Infelizmente retrataste aqui muito bem o que se passa em tantos lugares do nosso quotidiano, tantos, talvez se mais gente estivesse disposta a fazer brilhar a centelha...

    Abraço amigo
    Jorge Soares

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  2. Infelizmente hoje não te serviste da imaginação para escrever uma história de encantar a que já nos habituaste.
    Hoje esta é real, este cenário não foi inventado, é vivido todos os dias nos mais diversos locais.
    Há no entanto aqui uma diferença que raramente se utiliza e que nos coibimos tantas vezes de fazer: reclamar. Talvez se usássemos mais vezes esse livrinho tudo funcionaria melhor.
    Haja coragem!

    Beijos
    Manu

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  3. As pessoas acomodam-se demais, sujeitam-se a tudo, deixam andar, ficam quietas e aguentam, é esta a realidade, não reclamam porque o quadro repete-se sempre igual, pensam que de nada adianta, mas alguém tem de dar o primeiro passo..., acontece com quase tudo na vida, aqui serviu de exemplo esse gesto e trouxe atrás todos os recalcamentos abafados até ali. Agora há que seguir os bons exemplos para que as mudanças se façam sentir!!..

    Um bem Haja...Rolando

    Beijokas

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  4. Rolando,

    Que triste realidade.
    Onde está o erro?
    Será que reclamar vai adiantar?

    Aqui no Brasil, tanto os hospitais públicos como os particulares são terríveis.
    Horas a fio de espera, médicos em quem não podemos confiar.
    Aí em Portugal é assim?
    Às vezes penso que a medicina está perdida.
    Parece ser um problema grave e crônico.
    E rezo à Deus para não adoecer. É verdade.
    Mas, e os doentes, como ficam?
    É triste , amigo.
    Muito triste.

    Gislene.

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  5. Caro Rolando,

    A realidade disso tudo é que o povo não sabe a força que tem. Ou se sabe, ainda não encontrou a motivação ou um líder capaz de abalar sua estrutura e tirá-lo da inércia. Na década de 90, aqui no Brasil, houve um movimento que chamamos de caras-pintadas, onde o povo saiu às ruas para protestar contra o governo vigente. Esse gesto foi à mola propulsora que alavancou todas as mudanças que se seguiram. Daí o ditado: “ O povo unido jamais será vencido.”

    PS: Obrigada, pelo comentário generoso no meu blog. Você é fonte de inspiração!

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  6. De fato Rolando, são fantásticas tuas narrativas.Neste caso, uma chamada á realidade que nos cerca.Parece que andamos meio parvos.Reclamamos,reclamamos, mas não nas vias corretas.É importante nos lembrarmos que existem ainda formas de denunciar o que anda errado na sociedade e tomar posse do que é direito do ser humano!
    Um grande abraço

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  7. Rolando

    O povo foi convidado a adormecer e desistir! Onde está aquele povo que conheci que não deixa barato?

    beijos
    Anne

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  8. Amigo Jorge,

    Sim... faz falta a centelha, para começar algo... para que surja a chama.

    E sabes... o que ali retratei... foi 90% verdade... e aconteceu comigo, há três dias atrás.

    Um abraço

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  9. Manu,

    Sim... coragem deve ser a palavra certa. E talvez também dar um outro significado aquela de "povo de brandos costumes ".

    Não te parece?

    Beijos

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  10. Libel,

    Eu sei a pessoa sorridente que és... e sei que mesmo com essa disposição também ficarias possessa com situações destas, não é?

    Beijos, amiga

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  11. Gislene,

    sabes... faço sempre uma comparação entre a educação e a saúde. Tratar das crianças e jovens versus tratar dos idosos... não deveria ser assim. Ambos representam os extremos da nossa vida, ambos são o principio e o fim do que somos.... estamos a mutilar-nos a nós mesmos, enquanto humanos...

    Beijos, amiga

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  12. Julieta,

    Cheguei a escrever umas linhas, que depois apaguei... e que seriam o inicio daquela reclamação. Ia inspirar-me no célebre começo da declaração de independência da américa e escrever... " Nós, o povo"

    Sim... o povo não sabe a força que tem...

    Beijos, amiga.

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  13. Ivete,

    Reclamar... e elogiar. Pecamos pelo silêncio,aceitamos o errado como um facto consumado e sem solução... e esquecemos de elogiar as boas acções.

    Que tolos que somos.

    Beijos

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  14. Anne,

    Esse povo de que falas... está adormecido, não está? Os donos do mundo alimentam-nos de futebol,fanatismos e mundanices... e tentam não fazer ruido, não vá o povo despertar...

    Beijos

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  15. Oi Rolando
    bom voltar a sua casa , bom sentir sua presença no seu sorriso bonito e nas crônicas que tanta falta nos fez!
    obrigada por ter voltado ao convívio dos amigos!
    nao se vá mais... rs
    obrigada pelo comentário que muito me alegrou , de fato o carinho dos amigos nos traz de volta e como é gostoso abraçá-los todos os dias.
    quanto a fala de hoje é realmente assustador a inércia do povo de modo geral.
    acontece que se reclamamos somos mal educados , vivemos sob patrulhamento na maioria das vezes e porisso calamos.
    precisamos indignar mais, fazer valer nossa cidadania , enfim escrever escrever , se preciso "desenhar " rs no livro de reclamações ...
    quem sabe hem?
    abraços abraços Rolando

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  16. Este é um assunto onde alguém pode e deve escrever no livro de reclamações.
    E aquele ou aquela que esteve horas no corredor incapaz de falar, incapaz de se mover, muitas vezes desejando um simples copo de água uma palavra ou um olhar de conforto?
    Haveria livros com páginas suficientes? Acredito que não!
    Mas ainda bem que começamos a ter coragem de nos expormos, sem medo de retaliações.
    Abraço

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