terça-feira, 31 de maio de 2011

Todos os castelos nascem nas nuvens


Por vezes – tantas vezes – a realidade assumia no baú das memórias um peso tão incerto quanto o da fantasia; simples flocos de algodão doce.

O ontem, enquanto sinónimo de passado… travesti de sonhos desejados. O que era a realidade, senão o conjunto de todas as coisas que ele decidira aceitar como reais, verdadeiras? Ele decidira… simplesmente isso, ele decidira.

Fechou os olhos à espera do soar da primeira badalada.

Por vezes… tinha uma certa dificuldade em separar o que – no passado já vivido – realmente vivera, confrontado com a ficção de todas as personagens que já encarnara, confundido com todos os papéis que já declamara, as histórias que inventara, as pessoas de carne e osso que desenhara.

Em sonhos tão reais como dias de sol, viajara até aos confins do mundo, abraçara mil profissões, vestira todos os rostos e encenações de humano insatisfeito, criativo e… ingénuo.

A primeira badalada não o fez estremecer. Tampouco a segunda.

- Lembras-te de uma noite fria – também de aniversário – em que pegaste na tua bicicleta e me disseste: “ É hoje que vou ensinar-te a andar de bicicleta” . Lembras-te?

Ele sorriu em compasso com a terceira badalada.

Lembrava-se sim.

Eram adolescentes, colegas de escola… e ela ousara confessar-lhe não saber andar de bicicleta.

- Impossível – respondera ele, atónito – todo o mundo sabe andar de bicicleta.

E após uma ligeiríssima pausa, contrapusera:

- E lembras-te tu daquele dia em que, pensando nós estar sozinhos na praia, descansados, rodeados de gente desconhecida, namorando tranquilamente… fomos surpreendidos por uma gritaria imensa e de repente, surgidos sabe-se lá de onde, apareceram todas as nossas filhas e netos, por uma mera coincidência, juntos todos no mesmo local, numa praia tão grande?

- Se me lembro… para além do embaraço, apanhei um susto…

Dez… Onze… doze badaladas.

Só mais um segundo, mais um virar de página, um dia mais, um ano mais.

- Parabéns, meu amor… agora já te posso chamar de octagenário…

Ele riu-se, correspondendo ao beijo apaixonado da companheira de muitos anos.

Quem os visse ou ouvisse assim… aceitaria todas aquelas recordações com a condescendência de uma vida bem vivida, repleta de peripécias e momentos de partilha, de pequenas cumplicidades.

Como poderia alguém suspeitar que nada aquilo acontecera realmente?

Ele nunca a ensinara a andar de bicicleta, tal como nunca partilhara os bancos da escola com ela, haviam-se conhecido já bem adultos. Nunca haviam sido surpreendidos pelas filhas ou netos na praia, tal como muitas outras peripécias narradas com a emoção real de quem viveu cada segundo daquele passado fantasiado.

Sempre assim fora, entre eles os dois.

A divagação de um deles era o rastilho imediato para o deleite do outro.

Ou seria simplesmente o polvilhar da realidade com salpicos de algodão doce?

Não.

Aquela… parte ficção, parte realidade, era a realidade por inteiro, fazia parte das memórias de ambos, existia como o declamar de um texto em palco, cada um deles bem ciente das suas deixas.

Aquele passado, real ou imaginário… era deles… e só deles.

- Olha… sabes uma coisa? E se bebêssemos uma ginginha para celebrar?

- Uma ginginha? Ai o que tu me foste lembrar… a primeira vez que provámos uma ginginha… oh… ainda te lembras onde foi, ainda te lembras?

- Claro que me lembro… até me lembro do que tu vestias naquele dia… e vais ver que não me engano…

E lá foi desfiando mais um rol de memórias que para vocês, amigos leitores, serão tão reais como as palavras deste texto.

E para eles, as personagens desta história parte real, parte ficção… também.

Afinal... a quem mais importa a verdadeira realidade das coisas... senão a quem a vive?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

As 365 palavras




AMOR…PAZ…PROSPERIDADE…

Saúde… onde estava a caixa azul da saúde? Era capaz de jurar aos seus botões que ainda na véspera as ordenara de novo, desta feita por ordem alfabética. Saúde, saúde, letra “S”… essa agora… onde estaria escondida?… ahhh….

Com um suspiro de alívio, pôs-se em bicos de pés, esticando-se toda. Não se lembrava de a ter guardado na última prateleira, mas enfim… o importante era que a encontrara.

Retirou-a do local e pousou-a sobre a mesa do pequeno quarto, há muito transformado em arrecadação. Casas pequenas.

Um dia… vou mesmo ter que pôr alguma ordem nisto… - pensou.

E antes que cedesse à tentação de no imediato arrumar algumas peças de roupa soltas, ou finalmente retirar daquele canto a velha bicicleta de ginástica, abriu o fecho do colar, retirou a medalha e depositou-a apressadamente na pequena caixa azul.

Acto contínuo, pegou numa outra caixa – em tudo idêntica à primeira, excepto na cor – fechou as luzes e rumou à sala.

No fim-de-semana… arrumo tudo no próximo fim-de-semana… - um pensamento promissor, no mínimo.

A caminho da sala, apanhou a chávena de café fumegante, esquecida na cozinha.

Abriu as janelas.

Primavera… finalmente primavera…

Enquanto sorvia o café demasiado quente, ia lançando olhares disfarçados à pequena caixa entreaberta que trouxera da arrecadação; quadrada, de cartão cor-de-rosa, sem laços ou artifícios. O importante… era o seu conteúdo.

Uma medalha, um círculo fino de prata.

Um pequeno círculo de prata… em tudo idêntico aquele que retirara do pescoço, minutos antes, com a palavra “AMOR” gravada.

Colocou-o no pescoço, com a prática adquirida de um gesto tantas e tantas vezes repetido.

AMOR…PAZ…PROSPERIDADE…SAÚDE…ALEGRIA…AMIZADE…ALTRUISMO…GRATIDÃO…FÉ…

Quantas caixas possuía, cada qual contendo um pequeno círculo de prata, com uma palavra escrita? Quantas palavras escritas, quantos pensamentos positivos expressos em letras, em vontade, em actos de fé? Vinte, cinquenta, cem?

Não.

Muito mais que isso.

Exactamente… 365 caixas, cada uma contendo um pequeno círculo de prata, uma palavra de optimismo e gratidão à vida.

HONESTIDADE…PERSEVERANÇA…PAIXÃO…ESPERANÇA…

Um dia, há muito tempo atrás… a sua melhor amiga dissera-lhe:

“ Sabes…creio que andas demasiado triste… e sem razão. A vida é muito mais que as tuas tristezas… porque não tentas transportar contigo as boas ideias, os bons pensamentos? “

O resto… surgira naturalmente, em conversa ao serão, numa noite de Inverno. Alguns cálices de vinho do Porto depois, a ideia transformara-se num projecto, e de projecto a realidade…

No seu 40º aniversário… comprou um fio de prata, o mais fino, barato e simples que encontrou. E no mesmo dia, o primeiro circulo de prata.

Ali gravou a primeira palavra, já sabendo antecipadamente que em muitos dias usaria penduradas no fio de prata não uma, mas duas ou mais medalhas.

AMOR

Fora a primeira palavra gravada, a primeira das 365 que laboriosamente gravara, depois de muitas noites a escolher, seleccionar, separar. Nunca imaginara que o vocabulário pudesse albergar tantas palavras esquecidas de boas intenções.

Sorriu.

Amanhã… usarei a PROSPERIDADE… dava-me jeito uma ajuda…para reformar a casa, talvez uns sofás novos… e o AMOR, claro… sempre o amor…

domingo, 22 de maio de 2011

Uma pequena história...



Poderiam ser Caim e Abel.

Mas não o eram, apesar de igualmente nascidos no paraíso.

E tal como as míticas figuras dos tempos da Criação… também um deles pôs fim à vida do irmão, talvez cego de ciúme, vaidade, luxúria, ninguém o saberá jamais.

Irmãos gémeos, reluzentes, belos.

Malmequer… e Bem-me-quer.

A história preferiu esquecer o sórdido destino de Bem-me-quer. Nunca será contado nos bancos de escola que Malmequer, num belo dia de primavera, arrancou as pétalas - uma a uma - ao irmão e o deixou indefeso ao sol, para secar até morrer. Quando muito, restará o nome – Malmequer – invocando um sentir maléfico de que ninguém mais recordará a origem.

Mas a história, na sua imprevisível roleta, ditou que fosse o irmão sobrevivente a expiar por toda a eternidade a morte do desditoso Bem-me-quer.

E é assim que todos os dias, desde um passado longínquo… alguém colhe um malmequer e mesmo sem saber… evoca o nome do irmão morto, vítima do ciúme daquele que agora, sem saber, morre da mesma forma, vendo ser-lhe arrancadas com dor – uma a uma – todas as pétalas… e depois abandonado para secar… e morrer.

Malmequer…Bem-me-quer…Malmequer…Bem-me-quer…Malmequer…


terça-feira, 17 de maio de 2011

Saudades do Futuro


- Algo está errado… profundamente errado…

Um pensamento insistente, incómodo como uma dor de dentes; uma falha na muralha do espírito.

Passou a mão pela barba rala, num gesto inconsciente que repetia vezes sem conta, de cada vez que se sentava – como naquele momento – entregue aos seus pensamentos.

- Algo está errado… - repetiu num murmúrio.

Ninguém o ouviu.

O entardecer de Maio – igual a tantos outros – sibilava de ventos e trinados de pássaros, de papoilas vermelhas e espigas verde amarelo de trigo e centeio; um céu azul profundo, daquele azul que só os olhos mais azuis conseguem imitar.

Afastou as ervas altas com as mãos, deixando a descoberto os últimos tijolos do que fora, em tempos idos, uma eira.

Não era suficientemente velho para albergar na memória imagens das mulheres peneirando os grãos de cereal sobre aquelas pedras; mas o pai descrevera-lhe o ambiente, apontara a dedo o deambular dos caminhos sinuosos que contornavam aquele monte – nome antigo que significava fazenda ou habitação no cimo de um morro.

Monte dos Albardeiros, assim se chamava.

Talvez pelo extinto oficio dos albardeiros, homens rudes mas de mãos hábeis no trabalhar do couro, na construção de selas, albardas e alforges.

Fosse como fosse… o implacável passar dos anos ditara o abandono, os sons dos rebanhos de ovelhas a dar lugar ao avançar das ervas, ao secar dos eucaliptos e ruir dos telhados.

A antiga eira resistira heroicamente, disfarçada da inclemência do sol pelo manto de ervas e musgos que a camuflavam por completo na paisagem.

Existem lugares assim… que mesmo sendo banais, evocam sensações únicas.

Talvez que outros procurassem o refugio e silêncio no alto de uma árvore, à beira mar, numa auto-estrada, num sótão abandonado, no alto de uma cachoeira. Ele descobrira naquele pequeno círculo de tijolos avermelhados, rodeado de ervas altas, um sereno pedaço do paraíso… e ali se refugiava, sempre que o espírito lhe pedia um pouco de paz e clemência.

Mais um… aniversário, simplesmente isso. Mais um.

Pudessem os desejos ser ouvidos e levados pelo vento… e ele gritaria a plenos pulmões o que lhe ia na alma.

Mas o vento não ouve nem faz eco de mais nada, senão dos próprios passos. E os desejos… ah… de que serviria gritar ao vento os seus desejos?

- Algo está errado…

Há muito que aquelas simples palavras lhe atormentavam os sonhos, como uma sensação indefinível de um grão de areia raspando na engrenagem bem oleada dos dias monótonos e cinzentos que vivia.

Monótonos, cinzentos, inócuos.

Reclinou-se sobre o manto verde e desapareceu sob a linha do horizonte, bem abaixo das espigas, malmequeres, cardos e hortelâs.

Observou sem pressa as primeiras estrelas no céu, o subir da lua no firmamento cristalino.

A sensação familiar de um nó na garganta empurrava-lhe os pensamentos em direcções por desbravar.

Medo do desconhecido?

Medo de arriscar?

Chega um momento… em que a palavra “urgente” assume um peso nunca antes revelado. Talvez fosse tão somente um mero aniversário, é verdade. Ou uma desculpa inconsciente para reflectir sobre o que era… ou aquilo em que se estava a transformar.

Ou uma forma muito criativa de se continuar a enganar a si mesmo.

- Medo do desconhecido… medo de sofrer…

O murmúrio morreu-lhe nos lábios.

Uma estrela cadente rasgou o azul quase negro dos céus, um breve instante de luz desenhado a fogo sobre o manto de estrelas. Um desejo por conceder.

Um desejo.

Porque não? Um desejo, um mero desejo, um único desejo, em simples desejo.

Porque não?

Fechou os olhos e cerrou os punhos, num combate imaginário contra os deuses e o destino.

- Desejo que…

O vento não amainou, as criaturas da noite não interromperam os seus afazeres, a lua não se tornou mais brilhante nem as estrelas mais incontáveis nos céus. Nada mudou naquela penúltima noite de Maio, senão talvez a inquietação do espírito.

A vida é feita de opções, dizem.

Algumas certas, outras erradas, outras incertas.

Mas acima de tudo.. é feita da capacidade de mudar, de transformar, de refazer, de aperfeiçoar ou de simplesmente … criar algo de novo, diamante bruto de cinzas feito.

E também.. de voltar atrás, não aquele voltar atrás em busca de passados já gastos… mas o voltar atrás para apanhar do chão os diamantes que por vezes se jogam fora, pensando ser vidro baço.

E entretanto… eis que desponta a manhã…

sábado, 7 de maio de 2011

As olheiras da concórdia


Onde vais?

- Não sei… sinceramente nem sei… só sei que vou…

- Poderias ficar, só um pouco mais…conversar, talvez?

- Gostaria muito… mas sabes, creio que já esgotámos as palavras…

- Não digas isso… connosco as palavras nunca se esgotaram…

- Não, não se esgotaram, é certo. Mas cansaram-se, de tanto se digladiarem entre si…

- Mas isso só acontece por tu seres um teimoso, um incorrigível teimoso, nada mais…

- Talvez, sim… talvez que a minha teimosia e a tua ânsia de controlar todos os átomos em teu redor…

- Não sejas assim, eu não sou controladora… preocupo-me contigo, simplesmente isso…

- Sei que sim, do teu jeito… talvez como também sintas porventura a minha teimosia, sempre que faço algo a pensar em ti… e que não te agrade…

- Então… se nos entendemos tão bem… porque partes? Sabes que gosto de ti, acima de todas as coisas…

- Sei… tal como eu também gosto de ti, muitas vezes mais que de mim próprio…

- Então… não partas… fica…

- Não posso… voltaríamos em breve a brigar e a dardejar farpas… como um eterno repetir de dias já passados…

- Mesmo assim… não partas… fica…

- Mas porquê? Qual o sentido de ficar, já antevendo que amanhã, na próxima semana ou em outro dia qualquer brigaremos de novo… magoando-nos mutuamente? Mais vale simplesmente… deixar assim… e não sofrer mais…

- Não… não podes ir… isso seria desistir… não desistas. Olha… quando vires duas pessoas – pessoas normais, assim como nós – acabadas de brigar… sabes como reconhecer se são um casal… ou um simples par de namorados?

- Não estou a compreender onde queres chegar…

- Já perceberás. Mas primeiro responde-me. Saberias distinguir tratar-se de um casal ou de um simples par de namorados?

- Não, claro que não… como vou saber?

- Pois olha… é bem simples. Pelas olheiras.

- Pelas olheiras? Continuo sem compreender…

- Sim, as olheiras… é que sabes…depois de uma briga, mesmo daquelas bem feias, o par de namorados despede-se – ou nem isso – cada um ruma ao aconchego de sua casa, e na tranquilidade do sono… e dos mimos da família… a zanga dilui-se, esfuma-se, reduz-se a um mero incidente dos dias… e na manhã seguinte, quando se encontram de novo, aqueles dois rostos irradiam saudade, arrependimento… vontade de recomeçar tudo de novo…

- E com o casal…

- Com o casal… a briga vai com eles para a cama, fica estendida bem no meio dos lençóis como uma terceira presença, corta-lhes as palavras, tira-lhes a vontade de sonhar, reduz o descanso a um mero farrapo, aqui e ali ainda cortado por alguns restos de conversa inútil. E quando amanhece e ambos abrem os olhos, sabem qual o rosto que encontrarão pela frente… entorpecido de olheiras e do sono que não chegou a ser descanso. E então… terão que encontrar forças e inspiração… para fechar a terceira presença no armário e começar um novo dia… quer faça sol ou chuva, seja primavera ou Outono… é essa a diferença…

Ele pousou a mala no chão e olhou para a fechadura da porta.

Desistir… ou tentar de novo?

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Janela do mundo


( Foto de minha autoria - Cacela velha, Algarve )


- Mestre… algo me atormenta…

- Percebo que sim, meu amigo, percebo que sim… estarás melancólico, porventura?

- Melancólico? Não sei definir, mestre… é um misto de tristeza, apreensão… como se estivesse à janela a ver passar o mundo…

- É um pensamento deveras interessante, esse…

- Interessante, Mestre? Não. Não é interessante… é algo mais como uma solidão palpável, uma espécie de abandono…

- Fiquei curioso… e entretanto, suponho que já tenhas reflectido sobre a questão…

- Já… já pensei muito… e nada mais encontro senão a cauda dos meus próprios pensamentos… porque caminho em círculos, mestre?

- Ah, meu amigo… quem melhor que tu mesmo para descobrir as respostas que procuras? Mas… repito, fiquei curioso… falaste em abandono, em solidão… depreendo que a analogia com o veres passar o mundo da tua janela… terá a ver com esse facto?

- Certamente, mestre. Todos passa e ninguém me vê… serei assim tão invisível aos olhos dos que me rodeiam?

O mestre sorriu, em contraste com a expressão de pesaroso desânimo do discípulo.

- Sabes… quem anda na rua tem uma certa dificuldade em adivinhar quem se oculta por trás das janelas de cada casa… todas elas parecem iguais, principalmente quando fechadas… Já experimentaste abrir as janelas de par em par ou, melhor ainda… sair para a rua e tropeçar nos que ali passam?