quinta-feira, 28 de abril de 2011

Rastilho de sonhos



Houvera um tempo – lembrava-se bem – em que tudo se afigurava como urgente.

Crescer era urgente.

Amar era urgente.

Marcar posição era urgente.

Contestar era urgente.

Viver era urgente.

Tudo era urgente… mesmo que nem sempre soubesse o porquê.

Porque o importante… era mostrar ao mundo que existia, deixar uma pegada eterna na poeira dos dias.

Não bastava SER. Era urgente que os outros soubessem que ele era, que estava a “Ser”.

Houvera também um tempo em tudo se podia contar, medir, comparar, ultrapassar.

Ser mais forte, mais sedutor, mais crítico, mais criativo, mais, mais… sempre mais qualquer coisa.

A vida é feita de muitos tempos – pensou.

Recuou dois passos, encostando-se à parede caiada de branco; sim, aquela memória de um tempo ido ainda subsistia, trinta Invernos depois, a adolescência irreverente transformada numa meia idade que não sentira chegar, nem aproximar.

Aos olhos de todos os espelhos, reconhecia-se com o mesmo olhar, talvez mais enrugado é certo, talvez mais grisalho, talvez mais… velho; mas o mesmo olhar.

Um rodopio de lembranças envolveu-o numa súbita espiral de melancolia – sim, recordava-se bem, fora numa manhã, a caminho da escola, acompanhado de um amigo. Sem motivo ou pretexto, puxara de uma caneta grossa e rabiscara aquelas palavras na parede branca amarela de uma rua estreita e deserta.

O amigo ajudara-o em silêncio, retocando os contornos e limpando a cal esboroada da parede.

Depois continuaram rua fora, missão já cumprida.

Sonhar? Sim, certamente… lembrava-se do que queria dizer com aquele pequeno escrito, qual testemunho numa garrafa lançada ao mar.

“NINGUÉM PODE SONHAR POR TI”

- Está fantástico, não está?

Ele acordou da letargia, subitamente devolvido ao tempo presente pela voz cristalina.

- Se não se importa… - e fazia-lhe um gesto a pedir passagem – talvez daí eu consiga fotografar melhor…

- Claro, claro, desculpe… - e cedeu-lhe passagem, desviando-se um par de metros – aqui já não apareço na fotografia, pois não?

Ela sorriu, um olho a espreitar detrás da máquina.

- Obrigado… adoro grafitis, já vi muitos grafitis… mas este é simplesmente… sublime.

E colocou uma expressão de encanto genuíno que o deliciou.

- Sim… creio que tem razão… eu também me perdi, olhando para ele…

Ficou a vê-la, uma foto, duas, três, afinal meia dúzia. Tinha idade para ser sua filha, uma pincelada azul nos cabelos negros, as roupas de cigana fora de moda que ele tanto apreciara, nos seus tempos de adolescência.

Sentia que ela se identificara com a mensagem.

- Há quanto tempo estará isto aqui? Quem o terá escrito? Já imaginou? – e ia passando os dedos ao de leve sobre as letras escarlate – o que estaria a pensar a pessoa que escreveu isto aqui?

Ele ainda abriu a boca, impelido por instinto em dizer à jovem turista que fora ele o autor de tão singular expressão na parede. Mas claro que nunca o faria, não teria o mínimo cabimento, nem sentido.

- Sim… - limitou-se a concordar com um aceno de cabeça – tem razão… o que estaria a pensar o autor, quando escreveu isto?

Ela lançou-lhe um sorriso de censura.

- Autor… ou autora. Não sabemos, pois não?

- Autora? …ah, claro, claro… pois, autor ou autora, tem razão… nem está assinado…

Ela remexeu na bolsa, aparentemente em busca de algo.

- O senhor… faça de conta que não está a ver nada, ok?

E perante o olhar incrédulo dele, lá puxou de um pequeno objecto, que de pronto se revelou ser um lápis.

E sem se importar mais com a presença dele, encostou-se à parede e rabiscou algo. Depois virou-se, lançou-lhe um adeus e seguiu adiante rindo, como criança apanhada a meio de uma travessura.

“ E que todos quantos passem por aqui se atrevam também a sonhar”.

Ficou a olhar para o novo rabisco na parede.

As palavras – sabia-o bem – eram livres.

E por um ínfimo mas saboroso momento, sentiu-se feliz… enquanto causa – rastilho de sorrisos e de sonhos.

Sim… ela escrevera bem… o que vale a vida… sem esse atrevimento, essa rebeldia, essa coragem de … contra ventos ou marés… ousar sonhar?


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Renovação de contrato



Ex.mo Sr

Leonel Penedo da Conceição


Vimos por este meio relembrá-lo que dentro em breve expirará o contrato celebrado entre vós e a nossa empresa, “Paraíso na Terra, sociedade sem fins lucrativos, S.A”.

Esperamos continuar merecedores da vossa confiança, enquanto prestadores de serviços de felicidade, apostando na seriedade e transparência.

Face ao actual estado de crise, não aumentaremos – durante toda a vigência do novo contrato – um só cêntimo à vossa prestação; o nosso serviço continuará a ser, como sempre foi até hoje... grátis.

Queira devolver-nos por favor o cupão de resposta devidamente preenchido e assinado, para poder usufruir de mais um ano de serviços de felicidade, com cobertura total em caso de tristeza, depressão, ansiedade e todo o tipo de catástrofes naturais, sociais ou pessoais.

Recordamos também que... “


Não era necessário reler as restantes linhas da missiva.

Estava perfeita.


Sorriu.

Não era todos os dias que enviava por correio uma carta para si próprio.

E vendo bem as coisas... qual o problema?

Sim... porque não um seguro contra a tristeza, mesmo que imaginado, mesmo que na forma de uma folha de papel redigida pelo seu próprio punho... e remetida a si mesmo?

A loucura – sabia-o bem – era simplesmente um estado de espírito, nada mais.


Rua das janelas azuis... número sete... Vila flor...”


Empurrou suavemente o envelope e este desapareceu de pronto na ranhura estreita do marco de correio.


- Pronto, já está... e venha de lá mais um ano com cobertura total contra a tristeza...

domingo, 10 de abril de 2011

Uma aula... inesperada


- Mãe… sabes? O professor não gosta de mim…

A mãe pousou a colher de madeira no fogão e olhou de relance para o pequeno Miguelito, queixo enterrado nas mãos e expressão infeliz.

- Ora essa, Miguelito, que coisa para se dizer… isso nem parece teu…

O filho torceu o nariz, afastou os cadernos para o lado e pôs-se a rodopiar a esferográfica como se esta fosse um pião.

- Mas é verdade, mãe… o professor de Integração, é desse que estou a falar, tu conheces, mora ali ao pé do teu trabalho…

- Eu sei quem é o professor de Integração, Miguelito… e olha que é uma excelente criatura… Amândio, ou Amaro….

- Amadeu – lá corrigiu o Miguelito – trocas sempre os nomes – o senhor Amândio é o porteiro da escola…

- Ah, sim… claro, claro, que cabeça a minha… professor Amadeu, é isso mesmo…

Ela levou a colher de madeira à boca – talvez mais um pouco de sal, sim - e espiou o relógio. O tempo voava, as lides domésticas requeriam tempo, muito tempo… e tempo era precisamente aquilo que não tinha.

- Já preparaste a mochila? Não te esqueceste de nada? Hoje não é dia de ginástica? Já guardaste os ténis?

O Miguelito lá acenou que sim com a cabeça, continuando a tentar transformar a esferográfica num pião.

A mãe deixou-o em silêncio uns segundos, esperando o ferver da sopa; aproveitou para colocar os pratos, os copos, talheres – mais uma refeição à pressa – apanhar duas peças de fruta e um pequeno pudim.

Ser pai e mãe em simultâneo não era fácil; Não impossível… mas nada fácil mesmo. Por sorte, o horário escolar encaixara sem grande ginástica no seu, permitindo até por vezes almoçarem juntos, como naquele caso. Claro que tudo tinha que ser feito em corrida, claro que os esquecimentos aconteciam. Na semana anterior, levara por engano o lanche do filho para o banco, esquecera um dossier de serviço na reunião de pais e inutilizara por completo uma camisa branca ao deixar cair sobre ela os pincéis do Miguelito, entretido no trabalho de geografia.

Mas a vida também era feita de pequenas peripécias, e nem todas ruins.

Por coincidência, aquele mesmo professor – Amaro, Amândio, Amadeu, trocaria sempre os nomes – fora o protagonista.

Estacionara o automóvel no local de sempre. E como habitualmente, sempre à pressa, caminhando a passo largo até ao banco, ao mesmo tempo que bebia o café. E vai daí… uma mão segurando o copo de plástico, a outra tentando não deixar cair os dossiers… como reparar no professor, imóvel defronte da porta de casa?

O infeliz procurava lembrar-se se guardara as chaves de casa, quando sentiu o embate.

Primeiro o embate, logo depois o café bem quente projectado sobre a camisa, a gravata a mudar subitamente de cor.

- Oh… perdão, perdão, perdão… - e a mãe do Miguelito desfazia-se em desculpas – não sei como aconteceu, professor… a minha cabeça…

Ele abria e fechava a boca, sem saber se rir ou protestar. Mas antes de ter tempo para algo mais, já ela puxara de um lenço e zás… vá de atacar a gigantesca nódoa, num gesto mais simbólico que útil – desculpe-me… ia completamente distraída…

Passaram-se alguns segundos – pelo menos assim lhe pareceu – e quando ergueu os olhos, ainda agarrada à camisa do professor, encontrou-o com um sorriso desarmante.

- Anh… desculpe… Mariana… dona Mariana, creio…

Ela abanou a cabeça, concordando – sim, sim… a mãe do Miguel…

Ele continuava a rir.

- Dona Mariana… já me pode largar… - e com o dedo apontava para cima, algures para uma das varandas do primeiro andar, onde outra mulher seguia atentamente o desenrolar dos acontecimentos - … ou a minha mulher ainda pensa que nós temos um caso…

Dona Mariana, mãe do Miguelito, empregada bancária, dona de casa e levemente distraída… ergueu devagar o olhar… viu a mulher debruçada da amurada, os olhos sorridentes do professor Amadeu… e soltou-o de repente, como se toda a vergonha do mundo lhe tivesse descido sobre a cabeça. Sim… por favor… que a terra se abrisse e a engolisse… depressa, depressa, depressa. Que vergonha…

Deu consigo a sorrir – a sopa já fervia – só de recordar o incidente embaraçoso.

- Vá, Miguelito… vamos despachar-nos, o almoço está pronto…

Ele lá foi arrumando lentamente os cadernos, o estojo dos lápis e a inseparável playstation, enquanto a mãe despejava o caldo fervente sobre os pratos.

- E agora… já me podes então contar essa história do professor Amaro não gostar de ti…

- Amadeu, mãe… Amadeu. O professor chama-se Amadeu…

- Ah, sim… claro, o professor Amadeu. Ora então conta lá as tuas desventuras, meu filho…

Miguelito olhou para a mãe, sem perceber ao certo se a ironia era sentida ou mera brincadeira.

- Ele deitou fora um trabalho que eu fiz… na sala…

A mãe empertigou-se toda, sem acreditar muito bem no que acabara de ouvir.

- O quê? Não devo ter percebido bem. O professor de Integração deitou fora um trabalho… um trabalho que fizeste na aula, foi isso?

Miguelito acenou que sim, depois que não.

- Mais ou menos… ele deitou-o para a água.

A mãe ficou a olhar para ele, boquiaberta. Miguelito sempre tivera o condão de a surpreender com tiradas inesperadas… mas desta feita, esmerara-se, sem dúvida.

Sentou-se, a situação requeria um pouco de calma. Certamente existiria uma explicação plausível para tudo… até porque a imaginação fértil do pequeno Miguel era bastante avançada… tendo em conta os seus onze anos de idade.

- Muito bem, muito bem… prometo ficar caladinha… não te interrompo… e tu contas-me toda essa história, muito bem contadinha, pode ser? Com vírgulas e tudo, mas mesmo tudo. Pode ser?

Ele atacou um minúsculo gole de sopa, queimou-se, protestou.

E lá contou a sua história.

- Pois olha… foi assim… logo de manhã, quando entrámos, ele pediu-nos para tirar uma folha do dossier… e disse para escrevermos um texto sobre uma frase que ele iria colocar no quadro. É esquisito… ele não costuma fazer nada destas coisas, quer sempre ver os nossos cadernos… mas desta vez até o Zé Luis ficou sério, ninguém percebeu muito bem.

E como demorasse a retomar a história, a mãe lá o apressou.

- Bem… até aí percebi. E o que escreveu ele no quadro?

O Miguelito fez uma expressão de estranheza.

- Uma coisa esquisita, já te disse. “ Eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto.” Foi só isto. E disse que tínhamos meia hora para escrever o que quiséssemos sobre aquela frase.

A mãe conteve um sorriso. A disciplina de Integração do Miguelito sempre fora um manancial de surpresas, desde que o professor Amadeu a assumira na escola. E a pretexto de um currículo onde seria suposto falar de cidadania, ética, cultura cívica… surgiam por vezes aulas no mínimo… inesperadas.

Sim… talvez fosse essa a palavra adequada para descrever o professor Amadeu.

Uma personagem… inesperada.

- E então? O que escreveste tu sobre a frase do quadro? Estavas inspirado?

O Miguelito fez que não.

- Não… ninguém sabia o que havia de escrever, mãe… ele até nos deixou conversar uns com os outros, imagina… e ficou sentado a olhar para nós e a sorrir… muito estranho, mãe, mesmo muito estranho… e nós escrevemos algumas coisas, a Maria Luísa escreveu a folha inteira, não sei como ela conseguiu… o Zé Luis só fez duas linhas…. Eu fiz metade da folha…

- Ah… muito bem, muito bem… então… e depois? O que aconteceu?

- Depois… o professor Amadeu pegou nas nossas folhas, leu-as todas baixinho e pediu para irmos com ele, precisava de nos mostrar uma coisa no pátio…

A sopa arrefecia, enquanto a mãe do Miguelito segurava a colher. Desta vez… a coisa prometia, sem dúvida.

- … e nós lá fomos, atrás dele . continuou – e a dona Matilde, a funcionária do primeiro piso, fez uma cara muito espantada, quando nos viu a passar no corredor… e imagina, mãe? Levou-nos até ao lago, aquele que tem a fonte…

- O lago? Aquele junto das árvores, no pátio da tua escola?

- Sim… esse mesmo. E depois… depois é que foi mesmo… muito estranho. Nem imaginas…

A mãe concordou com um movimento de cabeça. Pois não, não imaginava.

- Ele pegou em cada um dos nossos trabalhos… e começou a fazer… aqueles barquinhos de papel, como os que me ensinaste a fazer, lembras-te? Aqueles em que se dobra a folha várias vezes…

- Sim, sim… sei quais são… e depois? Vá, conta… e depois?

- Depois? Depois atirou-os à água, e disse para olharmos para eles. Oh mãe… ele atirou os nossos trabalhos à água, a sério, não estou a inventar…

- Anhhh… sei… claro que não estás a inventar… mas ele disse alguma coisa? Disse porque motivo os tinha lançado à água?

- Disse… mas ninguém percebeu nada. Nem eu.

A mãe fez-lhe sinal para que metesse mais uma colher à boca.

- Sim… mas tenta lembrar-te… o que disse ele?

O Miguelito esforçou-se por reproduzir a ideia, apesar de não se lembrar das palavras.

- … qualquer coisa sobre os barcos serem diferentes… apesar de feitos do mesmo papel, dobrados do mesmo modo… mas com diferentes coisas lá escritas…. oh, mãe… eu não percebi, a sério que não percebi…

A mãe sorria, cada vez mais interessada naquela aula … inesperada.

- E ainda te recordas da frase que ele escreveu no quadro?

- Claro que recordo, era tão esquisita… “ eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto”…o que achas que significa, mãe? Tu sabes?

A mãe continuava a sorrir-lhe. Aquele professor Amadeu…

- Talvez Miguelito, talvez… olha, já imaginaste… daqui a alguns anos, ou muitos anos… o que estarão fazendo todos os teus colegas da turma? Já imaginaste o que poderão ser… quando forem grandes… adultos?

Ele encolheu os ombros. Como adivinhar o futuro?

- Um daqueles barquinhos… poderá transformar-se num grande cientista…. Outro talvez num escritor famoso, outro ainda num atleta fantástico… ou quem sabe outro ainda num varredor de rua, no senhor do talho ou num arrumador de carros… já pensaste nisso?

Miguelito acenou um não indeciso com a cabeça.

- Sabes Miguelito… se o vento for forte… qual será o que ficará mais despenteado? O esperto… o inteligente… ou o culto?

O filho olhou para a mãe, encantado.

- Isso é uma adivinha, mãe?

- Não… diz lá… qual pensas que ficará mais despenteado?

Miguelito hesitou, sem saber muito bem como atacar o problema.

- Não sei… como posso saber?

A mãe passou-lhe uma peça de fruta para junto do prato.

- É simples, Miguelito… ficará mais despenteado… aquele que não estiver usando um chapéu, não achas?

O filho abriu a boca, num protesto inútil.

- Mas… tu não falaste em chapéus… assim não vale… porque não falaste em chapéus?

A mãe levantou-se, esvaziando os pratos sobre o lava-louças.

- Ora, Miguelito… porque há coisas que não devem ser ditas…. Devem ser descobertas… e suspeito…. Suspeito vagamente que talvez fosse isso que o professor Amadeu… enfim…

Olhou para o relógio de parede e deu um salto.

- Miguelito…. Ai… ai… olha as horas, olha as horas…. Estamos atrasados, corre, corre, vai lavar os dentes, anda, anda, mexe-te… senão sou despedida…

domingo, 3 de abril de 2011

Como lágrimas à chuva


Invisível… como uma lágrima à chuva, rodeada de gotas de água.

Assim se sentia.

Deve existir uma razão, um propósito para tudo isto… qual o sentido de continuar vivo… se não entender o porquê? – pensou.

Mais um dia findava, o sol desaparecendo sob nuvens distantes, o mar estranhamente silencioso.

- Respostas, preciso de respostas… onde errei? Onde errei?

Silêncio. Simplesmente o silêncio; sem respostas… nem vozes, nem ruído de passos, tão pouco mensagens em garrafas pela maré baixa.

Olhou em redor; coqueiros… um paraíso verde a perder de vista, areia imaculada, riachos cristalinos brotando das rochas e desaguando num mar turquesa. A felicidade – se cenário idílico de um filme – seria pintada com aquelas cores, certamente.

Mas… quanto tempo se passara entretanto? Um ano? Dois anos? Quando decidira abandonar tudo… emprego, família, amigos… e isolar-se do mundo numa ilha deserta… acreditara cegamente ter encontrado a solução – tudo quanto lera, quanto ouvira, quanto pensara… parecia apontar-lhe essa direcção… “ ouve a tua voz interior, foge das distracções que te cercam, inventa o teu próprio mundo”…

Não fora precisamente isso que ele tentara fazer?

Sobrevivera como um autêntico náufrago naquela ilha paraíso, meditara, rezara a um deus desconhecido, implorara por respostas…

Mas a solidão não acalmou, as noites não se esvaziaram de pesadelos, tão pouco o olhar se iluminou de descobertas… ou respostas.

Porquê? Porquê? Porquê?

Três anos antes… aquele acidente; brutal, inesperado, injusto, tremendamente injusto. Ceifara-lhe a felicidade, o presente, o futuro. Ela partira. Só isso. Para uma viagem sem regresso. Ele permanecera vivo… sem motivo ou razão. Porquê?

Sentou-se na areia, esperando sem pressa que o mar o visitasse.

Chegara ao seu limite, sabia-o bem.

Porque tudo tem um limite, um ponto a partir do qual… há que saber desistir… deixar ir… e aceitar.

Naquele momento, sentiu ter tocado essa ténue fronteira entre o querer estar vivo e o sentir o supérfluo de estar vivo.

A primeira das ondas da maré que subia tocou-lhe os dedos dos pés.

Sim… um tempo como outro qualquer.

Porque não?

Ergueu-se e dirigiu-se ao mar, o passo sem pressa.

Não sentiu a água; nos pés, nos joelhos, subindo devagar pelo peito, salpicando-lhe o rosto.

Não sentiu quando submergiu, expirando o pouco ar que ainda lhe restava nos pulmões.

Não sentiu nada.

Permaneceu sereno, balouçando com o vaivém das ondas. Abaixo da superfície, reinava o silêncio, um silêncio azul.

Aos poucos, um ardor encheu-lhe o peito, os pulmões vazios suplicando por um pouco de ar, só um pouco de ar. A vista turvou-se, imagens fantasmagóricas rodearam-no de cores garridas. Não viu anjos nem trombetas, túneis de luz, harpas celestiais, mãos estendidas.

Simplesmente… aquele vulto branco… ao longe, como em todos os sonhos, um corpo em sereno descanso, os braços pendentes, os cabelos esvoaçantes.

Chorou.

Inutilmente… mas chorou, o sal das lágrimas engrossando um mar salgado, simplesmente mais uma gota de tristeza num oceano silencioso.

O corpo não lhe obedeceu mais e com um impulso dos pés, irrompeu à superfície, o peito sequioso a devorar ávido o precioso alimento.

Ar… vida…

As lágrimas continuaram a cair-lhe no rosto, disfarçadas entre todas as gotas de água.

E foi então que o desespero lhe brotou da alma, na forma de um grito, que mais ninguém ouviu.

Mas gritou, e gritou, e gritou, até a garganta não conseguir mais emitir um único som.

Gritou, simplesmente.

De medo, de desespero, de querer morrer e de querer viver, de ter que prosseguir viagem sem mapa, sem rumo.

Mas ninguém o ouviu.

O mar, como sempre, acolheu no seu peito mais algumas lágrimas e a maré continuou a encher, mais salgada, sobre a praia deserta.