sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Um novo turno...

( Imagem de Leonid Afremov )

- … Mas que idade tem você? Desde que me lembro, sempre a recordo assim… você não envelhece?

Ela deixou-se rir, a cabeleira grisalha a ondular ao vento.

- Ora essa, Jonas… nem parece seu… e desde quando se pergunta a idade a uma senhora?

Ele levou a mão ao pequeno saco de flanela vermelha e retirou um par de amendoins torrados, que num ápice fez desaparecer na boca.

- É verdade, é verdade… nunca se pergunta… mas que quer? Eu sempre tive esta curiosidade… e recordo sempre a sua imagem e claro… essa sombrinha.

- Ahh, a sombrinha… a minha sombrinha cor-de-rosa?

- Exactamente… - e ele observava-a com atenção – aliás, nunca a vi sem ela, ao longo de todos estes anos… sempre juntas, sempre inseparáveis…

Ela lançou-lhe um ar cândido, as rugas dos olhos desdobradas num sorriso que a idade adocicara.

- Ora, Jonas… coisas de mulheres, você já devia saber que todas temos as nossas manias… você também tem…

- Eu? Essa agora… claro que não tenho…

- Ah isso é que tem… que eu também já o conheço há muitos anos… e esse saquinho de flanela, cheio de amendoins… o que é?

Ele resignou-se a um sorriso, qual criança apanhada com a mão no doce proibido.

- Amendoins… simplesmente amendoins, sou um guloso….

- Pois… sim… vou fazer de conta que acredito… como se eu não soubesse que anda sempre por aí a distribuir amendoins… como se fossem trevos de quatro folhas…

Jonas, pois assim se chamava o nosso homem dos amendoins, esticou o braço na direcção da mulher, a palma da mão aberta numa oferta de um punhado daqueles pequenos objectos cor de caju, estaladiços.

- Íris… você é terrível, uma pessoa já não pode oferecer inocentemente alguns amendoins que até você repara logo… e a propósito… quer um? São deliciosos…

Ela declinou amavelmente.

- Não sou só eu que reparo nestes pormenores – e espetou o dedo indicador para o alto – já ouvi uns rumores que você tem sido bastante elogiado… lá em cima…

Ele quase se engasgou.

- Íris… ok, ok… numa coisa dou-lhe razão, cada um com as suas manias… mas que quer? Habituamo-nos a fazer as coisas de um determinado jeito, não é? Tal como você e a sua inseparável sombrinha cor-de-rosa…

- Sim.. a minha sombrinha…

- Vá… conte-me lá… aqui de colega para colega… como é que faz? Para que serve exactamente a sombrinha cor-de-rosa?

Íris, olhos verdes e farta cabeleira grisalha, roupa de cigana a fazer lembrar os tempos em que ser hippie era também uma forma de vida. Meia idade, talvez mais, quase nos sessenta, pele tisnada de muito sol, sandálias de couro nos pés e… aquela sombrinha cor-de-rosa na mão.

- A minha sombrinha… para que serve a minha sombrinha, quer você saber… pois bem, eu conto-lhe… se prometer não revelar o meu segredo… a mais ninguém…

Jonas, o eterno homem dos amendoins, abriu os olhos de incontido espanto.

- Claro que não revelo, ora essa… um segredo é um segredo…

- Pois a minha sombrinha… - lá começou ela – é mágica, tal como os seus amendoins.

Ele ficou á espera da continuação… mas como Iris se limitasse a observá-lo, não resistiu.

- Não entendi… como pode ser uma sombrinha cor-de-rosa… mágica?

- Oh, Jonas… claro que pode… então como faz com os seus amendoins? Serão eles também mágicos… ou é você que faz a magia, de cada vez que anda aí pelas ruas, a ajudar estes humanos insensatos que nos rodeiam? Pois com a minha sombrinha… passa-se a mesma coisa, exactamente a mesma. Limito-me a abrir a sombrinha sobre as pessoas… e o resto é magia.

- Só abre a sombrinha? Mais nada? Nem um “Plim-plim”, “ abracadabra” ou umas palavras assim baixinho, numa linguagem qualquer esquisita? Nada?

Ela abanou a cabeça, sorridente.

- Nada… rigorosamente nada. Digo-lhes simplesmente que a sombra da minha sombrinha cor-de-rosa é mágica… e que os banha de magia… o resto… vem por acréscimo…

Jonas ainda ia acrescentar algo, mas um trovão distante, anunciando uma tempestade eminente, fê-lo mudar de ideias. Conhecia bem os sinais… e o respectivo significado.

Íris também os conhecia.

- Creio que Alguém nos está a dizer que já chega de conversa… e que é hora de entrarmos ao serviço…

Riram-se, um sorriso cúmplice ao canto dos lábios.

Afinal… a missão era a mesma, fossem os instrumentos um saquinho de flanela vermelha cheio de amendoins ou uma sombrinha cor-de-rosa.

- Hoje vou para norte – despediu-se ela – e você, Jonas?

- Para sul… durante toda esta semana, para sul….

Ficou a vê-la afastar-se, a saia larga a fazer lembrar uma delicada sacerdotisa, o passo ligeiro e as mãos a segurar inutilmente os longos cabelos contra o vento.

- Íris… - ainda gritou – só uma coisa…

Ela virou-se para trás, sem se deter.

- A sombrinha… porque a cor? Porquê cor-de-rosa?

Ela riu-se, um riso cristalino que lhe chegou límpido e com a cor de uma cascata de água fresca.

- Oh, Jonas… então de que cor haveria de ser? Os anjos também têm sexo… não têm?

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Um passeio no parque


Chuva. Miúda, persistente, intercalada de nuvens cinzentas.

Nem seria o frio, ou o vento... simplesmente aquela chuva insonsa, que de tanto cair, abafava o brilho do sol, fechava as pétalas das flores e retirava a vontade a tudo.

Chuva.

E, naquele dia... novamente.... mais chuva.

Espreitou de novo pela janela.

Não... nem valia a pena tentar esperar por uma aberta, um raio de sol. Decidida, deixou-se levar, atravessou o pequeno jardim que separava a pequena casa da rua estreita... e lá foram as duas, em direcção ao parque.

Muito cedo para os habituais corredores, os atletas de domingo, as crianças de triciclo.

O parque, bem encostado à lagoa de águas cinzentas, encontrava-se imaculadamente vazio.

Em silêncio, percorreram as veredas, contornaram a fonte de pedra, os canteiros salpicados de flores.

De quando em quando, salpicos teimosos insistiam em cair, gotejando dos ramos das árvores, sempre que a brisa soprava um pouco mais forte.

- Não... por aí não... vamos contornar o lago...

Ela não a ouviu... ou fez de conta que não ouviu.

- Teimosa... sempre teimosa...

Resignada, seguiu-lhe a vontade.

Ambas cor-de-rosa, alegres, sobressaindo do verde molhado do parque, contrastando no cinzento das pedrinhas roladas do carreiro. Conheciam tão bem aquele percurso que certamente o poderiam repetir, sem enganos, de olhos fechados. O parque, embora vazio de visitantes, permanecia um mundo cheio de movimentos e sons camuflados, de cantos inesperados dos pássaros, de correrias timidas dos esquilos, de gritos roucos dos cisnes.

As gotas de chuva, esparsas até então, engrossaram subitamente. Uma nuvem mais escura, sobressaindo do cinzento amorfo do céu, persistia em persegui-las.

- Corre... vamos para casa...

Ela fez mais força, os pedais rangendo ao esforço.

Não resultou.

Completamente encharcada, abriu a porta de casa e encostou a bicicleta cor-de-rosa à parede da garagem.

- Vou tomar um bom banho e já te venho limpar - cantou alegremente, como se a bicicleta cor-de-rosa a pudesse ouvir - não te quero ver enferrujada...

A bicicleta rosa, cestinha de vime pendurado no guiador, permaneceu muda, vendo a dona desaparecer no corrdor.

As bicicletas não falavam, claro. Mesmo que fossem cor-de-rosa.

Muito lentamente, deixou-se escorregar ao longo da parede, até junto da janela envidraçada. Se conseguisse que a sua dona a ouvisse... certamente que a primeira coisa que lhe gostaria de dizer seria que aquele local, bem junto da janela da garagem, era o seu local predilecto. Ali se deleitava com o movimento da rua, o passar incessante dos automóveis ruidosos, do buzinar de todas as manhãs.

E claro... não só por isso.

Existia também aquele ínfimo pormenor... daquela bicicleta cinzenta e prata, de cromados reluzentes, que todas as manhãs lhe lançava uma buzinadela cristalina, por vezes um piscar de farolim. Se o entregador de jornais soubesse...

Mas não.

Nem o entregador de jornais, montando a sua vulgar bicicleta cinzenta e prata sabia... nem a sua dona, como qualquer adolescente passeando no parque com a sua bicicleta cor-de-rosa sabia.

Quem poderia adivinhar?

Uma janela, uma bicicleta rosa e a suave sedução de um piscar de farolim, todas as manhãs?

Ahhh... se ela ao menos pudesse falar...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tu és a noite, eu sou o dia


- Não… definitivamente não me apetece…

E com este pensamento peremptório, o sol decidiu não se erguer no firmamento.

Puxou os lençóis um pouco mais para cima e contemplou a Via Láctea, família anónima da qual conhecia poucos primos. Todos eles residiam bem longe, orbitando outras estrelas, alheios à sua própria existência.

A grande nuvem de Magalhães, grupo de estrelas para onde se dirigia, permanecia estática no negrume da noite.

Pensamento curioso aquele, o de ele próprio ser Sol, fonte de vida e de luz, imerso na escuridão da noite, contemplando a Via Láctea… a sua família.

Uma estrela cadente rasgou os céus, polvilhando o vazio de pirilampos mágicos.

Sim, sem dúvida… a noite tinha uma magia especial.

Ajeitou-se melhor e deixou que os pensamentos flutuassem.

- Não te levantas? Eu já estou de partida…

O Sol lançou-lhe um olhar preguiçoso. A Lua arrumava as suas coisas – como conseguia ela guardar tantas e tão pequenas coisas dentro daquela maleta era um mistério insondável – e aprestava-se ao descanso.

- Não… não me apetece… creio que vou ficar aqui mesmo…o universo nem há-de sentir a minha falta, tenho a certeza…

- Mas o que te deu? É claro que vão sentir a tua falta… e despacha-te, é quase hora de amanhecer…

O Sol optou por fechar os olhos, numa fingida sonolência.

A Lua acercou-se um pouco mais, pousou a maleta de cosméticos e beijou-o suavemente na testa.

- Sol…

Ele manteve-se de olhos fechados.

- Sol… estou vendo lá ao fundo… bem longe… um campo de flores… girassóis, creio… estou todos impacientes, à tua espera…

O Sol, qual menino mal comportado, ainda tentou ripostar, a preguiça sem argumentos.

- Mas Lua… é sempre a mesma coisa, todos os dias… levantar, iluminar, deitar…. Levantar, iluminar, deitar… tu não te cansas? Eu estou tão cansado… é tão monótono…

A Lua piscou os olhos, naquele jeito meigo que só ela conseguia fazer.

- Oh… meu pequenino… claro que não é monótono… bem pelo contrário, é lindo…todos os dias e todas as noites acontece algo de único…. De irrepetível…

- Isso dizes tu… tu és a Lua… e julgas que eu não sei? Todas essas coisas bonitas, românticas… só acontecem á noite… eu nunca presencio nada de especial nem único…

A Lua apontou para um ponto no espaço bem distante.

- Olha… ali mesmo… lá ao fundo… consegues ver? – e apontava para uma queda de água, emoldurada entre montanhas.

O Sol espreitou… e ao espreitar consentiu que um tímido raio embatesse nas águas… formando de imediato um arco-iris.

- Vês? – e a Lua sorria, embevecida com o seu próprio estratagema – ora então diz-me lá, ó Sol… quem mais no universo senão tu… consegue criar um arco-iris?

O Sol sorriu, a alma infantil pejada de orgulho.

E sem querer, mais raios se soltaram do seu corpo, num amanhecer radioso e colorido.

A Lua passou-lhe a mão pelos cabelos em desalinho, puxou-lhe a coberta.

- Vá… levanta-te… que já estás atrasado… e eu também. Vemo-nos logo à noite?

Ele acenou que sim.

- Sim… por favor… vem cedo…

Ela viria, sim.

Naquela noite, como lua cheia. Bela e esplendorosa, rainha da noite.

- Virei sim… e agora, meu criador de arco-iris...vai…. Brilha… és único… vai fazer aquilo que só tu sabes fazer…. dar vida…

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O poço sagrado



- Pronto… está confirmado. Agora… quem vai dar a noticia?

Trocaram um olhar aflito.

- Bem… você é o mais velho, mais responsável. Talvez…

- Eu? Você está louco? Eu só recebi a mensagem, não tenho nada a ver com o assunto. Nem é o meu departamento…

- Meu também não…

- Nem meu…

Os três lançaram um olhar para o colega, ainda segurando um pequeno pedaço de papel na mão.

- Eu? – gaguejou o visado – não estão a olhar para mim, pois não?

- Claro que estamos – e o mais velho espetou-lhe o dedo no peito – foi você que fez os testes… você é que descobriu que estava seco… portanto, é você que irá dar a notícia que o poço secou…

O pequeno neurónio estremeceu, a cauda brilhante subitamente pálida. Dar a notícia? Ao mestre? Ao criador? Era mais fácil alguém pedir que se atirasse do alto de uma torre.

- Escutem… vá lá, sejam razoáveis… eu ainda sou muito novo… porque não você? Não é o seu departamento que trata destas coisas dos sonhos, desejos e tudo o mais?

O outro neurónio – o que aparentava ser o mais velho – abanava a cabeça.

- Nem sonhe… você é o responsável do poço… e mais ninguém. Portanto, se quer um conselho… despache-se, antes que seja tarde… quanto mais tarde receber a notícia, mais irritado o mestre ficará…

O pequeno neurónio mudou de cor três vezes. Mal se apercebeu dos empurrões, escada abaixo, os olhares de compaixão dos colegas, até um adeus disfarçado de alguém que lhe abria a derradeira porta. Provavelmente, não voltaria a ser visto – era essa a sensação que lhe transpirava dos poros.

- Mestre…

No centro da grande sala, o mestre fitava-o – rosto impenetrável, expressão fechada.

- Diga, neurónio nº 375. Qual o seu departamento? Apresente relatório.

O pequeno neurónio engoliu em seco.

- Mestre… departamento da imaginação… responsável pelo poço… venho entregar os resultados dos últimos testes…

- Ah, muito bem, muito bem… o nosso amo já me tinha perguntado por eles, estão sempre a fazer falta… você não sabe que ele está a meio de uma obra, muito… mas mesmo muito importante? E então… os resultados?

O neurónio 375 baixou os olhos, esticou a mão e pousou o relatório sobre a mesa.

- Bem… sabe… os resultados …. Não são … isto é… o poço talvez não…

O mestre, capataz absoluto de todas as tarefas do primeiro piso do cérebro, não tinha tempo a perder, muito menos paciência para aquele gaguejar trémulo.

- Neurónio nº 375… - gritou, as paredes estremecendo – os resultados?

- O poço, senhor… o poço secou…

O mestre ergueu-se, sentou-se de novo, ergueu-se novamente. Os olhos chispavam pânico, adornado de uma fúria impotente.

- O poço… o sagrado poço da imaginação… secou?

O neurónio nº 375 acenou que sim. Desejava ardentemente que o chão se abrisse e o devorasse.

Não foi necessário esperar muito para que o seu desejo se concretizasse.

- Pode retirar-se, neurónio nº 375. Será em breve desactivado, a sua colaboração já não é mais necessária…

O pobre mensageiro arrastou-se para o exterior da grande câmara, deixando o mestre, capataz do cérebro, entregue às suas próprias cogitações.

E agora?

Como dizer – e de que forma – ao consciente… que o sagrado poço da imaginação secara?

Como fora possível tal acontecer?

Sabia que o seu amo se encontrava a meio de uma tarefa importante, muito importante… a escrita de um livro.

E agora?

Lentamente, dirigiu-se à porta que dava acesso ao segundo piso do cérebro, onde se distribuíam os vários departamentos ligados à consciência.

Como dar a notícia?

“ O sagrado poço da imaginação secou… “

Aproveitou os passos ao longo do comprido corredor para ensaiar a melhor entoação.

Suspeitava que o supervisor da consciência iria ficar irritado, mesmo bastante irritado. E que – em sentido literal – rolariam algumas cabeças, por tão nefasta noticia.

Passou a mão pelo pescoço, antevendo o pior, enquanto ia repetindo maquinalmente:

“ Venho informá-lo que, pelas últimas análises efectuadas, somos obrigados a concluir que o poço… “


sábado, 19 de fevereiro de 2011

Desabafo nº 315


“ Para quem está aborrecido, tudo parece sombrio.” Alexandre Dumas

“ O dia é excessivamente longo para quem não o sabe empregar.”Goethe

Claro que era mais fácil desabafar em pequenos escritos – colados na porta do frigorífico – do que procurar soluções.

Metodicamente, amarrotou o pequeno papel amarelo – escrito no dia anterior – e rabiscou as citações para aquela manhã.

Depois sentou-se de novo na poltrona, à espera que o dia findasse.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A sauna das almas


Nota introdutória: A frase inicial não é minha, mas sim da Lis, no comentário ao post de ontem. Gostei muito do sentido... e sem dar por isso, estava a escrever uma história... Obrigado, Lis.


“ … a alma da gente se abre como mexilhões no vapor…”

Quando decidira aceitar o convite… nunca pensara que a frase pudesse ser algo mais que uma inspirada metáfora. Mexilhões, vapor… sim, a ideia de um banho turco, talvez… mas a temperatura estava a tornar-se já um pouco incomodativa…. Suava por todos os poros.

- Menina… por favor… - e esticou o dedo, naquele gesto característico de quem chama o “garçon”.

A funcionária, muito atraente na sua bata branca e decote a condizer, aprestou-se, toda solícita.

- Sim, senhor Roberto, diga-me… precisa de algo?

O dito cliente soltou um lamento, vagamente semelhante a um suspiro.

- O calor… não aguento mais… estou morrendo…

- Oh, senhor Roberto… claro que não está morrendo… então não vê todos os seus amigos ali ao lado, satisfeitos e de conversa? Acha que eles também estão morrendo?

- Mas eu estou, menina, eu estou… a temperatura nesta zona está terrível… o vapor… não aguento mais…

Ela sorriu e ajeitou-lhe melhor o pesado livro de capa dura sobre o peito.

- Sabe bem que é só a sua imaginação a trabalhar, senhor Roberto… vá, continue a sua leitura, está indo muito bem… em que página vai?

- … ainda mal comecei… estou a rever a parte da adolescência, quando fugi de casa…

- Ah, deve ser por isso… não se preocupe… a sua alma aguenta… vai ver que quando passar para outra página do livro essa sensação de calor desaparece, acredite…

E afastou-se, para virar a página de outro cliente.

O senhor Roberto ainda tentou esticar de novo o dedo, mas sem resultado.

- Onde me vim eu meter? Onde me vim eu meter? – murmurou aflito, grossas gotas de suor a escorrer da alma, as toalhas já bem empapadas do exorcismo das memórias.

“ … a alma da gente se abre como mexilhões no vapor…”

Quando a amiga lhe falara daquele local, imaginara uma sauna. Nunca imaginara que estaria deitado num confortável cadeirão, lendo a história da sua própria vida, profusamente ilustrada com imagens, sons e aromas. Onde teriam eles encontrado tudo aquilo… pormenores íntimos, obscuros e alguns até insignificantes que ele já esquecera há muito? Fosse como fosse, ali estava ele, rodeado de uma multidão de outras almas, cada qual com um pesado livro de capa dura pousado sobre o peito, página aberta sobre um instante do passado, relendo as memórias da sua vida, exorcizando temores e perscrutando o sentido da vida… da sua própria vida.

Era esse o objectivo.

Um ardor salgado embaçou-lhe a vista. Alcançara uma página do livro onde se revia bem mais jovem, oferecendo um ramo de flores a alguém.

Memórias.

Era esse o verdadeiro sentido para aquela sauna de almas, o lavar das memórias, o secar das mágoas.

Porque é bem certo que de nada adianta lavar o corpo… e esquecer de lavar a alma.

Percebeu isso. E assim, fechou os olhos… e deixou-se ir.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O lado de cá...


Cecília… Cecília era linda, rosto esguio e olhos cor de mel, um sorriso sereno. Madalena era ardor, fogo e paixão, uns lábios carnudos e peitos generosos, mal disfarçados sob as roupas leves de verão. Luísa era o andar, aquele movimento perpétuo de ondular as ancas como ondas do mar. Mas Bruna… Bruna era a garota de Ipanema, de pele dourada caminhando descalça na areia, Camila era o toque dos dedos, Joana era a voz, a voz mais sensual que já ouvira em toda a sua vida.

E no meio de todas… Júlia.

Júlia escrevia como ninguém, linhas soltas como poemas, descrevendo o mundo com aguarelas límpidas e pessoas felizes.

Mas fora Vanessa… simplesmente Vanessa que o levara ao paraíso dos sentidos, ao prazer absoluto, ao devaneio do corpo, ao delírio.

Ângela era suave, doce, um manto de carinho sobre as feridas e um unguento para a alma. Maria era a força, a vontade vibrante, o oásis de energia inesgotável onde ele bebia a inspiração.

Teresa era…

Colocou o último pedaço colorido sobre o fundo negro, aplicou pressão e depois sentou-se de novo, a observar a obra terminada.

À distância, as dezenas de minúsculas fotografias de rostos, dispostas cuidadosamente sobre o fundo negro… compunham uma imagem maior, um rosto andrógino e sem mácula, fitando-o na alma.

Aquela era a sua alma gémea, tinha a certeza.

Reunira numa única imagem os milhares de pequenas características que procurara avidamente encontrar numa mulher, ao longo de toda a sua vida; a inteligência, o sentido de humor, a poesia, o carinho e a ternura, o ardor e a paixão, a beleza física…

A sua alma gémea não apresentava defeitos, era simplesmente… perfeita, mistura divina do que de melhor ele imaginava cada uma daquelas mulheres possuir.

Não, não as conhecia a todas, claro. Não pessoalmente.

Mas escrevia-lhes todos os dias, recebia comentários todos os dias, alegrava-se e entristecia-se com as alegrias e tristezas que lia.

Quando encontrasse a sua alma gémea… - só de pensar nisso, estremecia de prazer. Quando seria? Sempre que clicava num novo contacto… sentia que estava mais próximo, talvez fosse aquela… a verdadeira, a única… a tal pessoa com todas as características que ele coleccionara ao longo da vida como desejos, como estrelas cadentes…

Um bip-bip no computador fê-lo sorrir.

Alguém desejava conhecê-lo.

Foi espreitar a fotografia.

Sim, claro… porque não? Clicou “Sim” e foi a correr espreitar o perfil.

- Neloooo…. Neloooo….

Reconheceu de imediato a voz.

À janela entreaberta da sala - paredes meias com a rua – desenhou-se o perfil de Tânia, a ruiva esquiva do fundo da rua.

- Nelooo… - gritou de novo – queres vir connosco ao bowling?

Ele desligou de imediato o ecran do computador.

- Não… não me apetece…

Ela debruçou-se à janela, afastando as cortinas com as mãos.

- Vá lá, não sejas um chato… vamos beber uns copos, atirar as bolas… deixa lá essa coisa da Internet por um pedaço…

- Não posso… não posso mesmo… estou a acabar um trabalho, é urgente….

Ainda lhe lançou um ar de constrangimento, mas sem grandes efeitos. Tânia até era uma miúda simpática… e sempre gostara dele, sabia-o bem… mas… como dizer… faltava-lhe sofisticação… pelo menos, se comparada com quase todos aqueles rostos com quem se correspondia diariamente.

- Nelooo… deixa isso, ora bolas… até parece que o mundo real está aí dentro desse caixote…. Vá, anda beber uns copos… eu faço equipa contigo no jogo, queres?

Ele queria… mas não o suficiente.

- Eu depois… talvez passe por lá… a sério… eu depois… mas primeiro tenho que acabar isto…

Ela já não ouviu as últimas palavras, correndo rua fora ao encontro do resto do grupo.

Nelo ligou de novo o ecran. O olhar nervoso devorou impaciente a meia dúzia de linhas escritas a negro, ao lado da fotografia.

O perfil?

O que dizia o perfil?

Quantos anos? Só?

Pela fotografia, era capaz de arriscar que teria …

Ah… gosta de poesia… óptimo, óptimo…

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Crónicas de Pompeu e Pompilia


- Estás muito charmoso, hoje…

- Oh… obrigado, obrigado… a sério?

- Claro que é a sério… sabes que nunca te minto…

- Verdade… e tu também sabes que eu aprecio imenso a tua franqueza, sempre… diz-me… e que tal se eu colocasse um pouco mais de brilho, aqui?

- Hum… não sei… talvez seja demais…

- Demais… sim, deves ter razão… e se limpar estes brilhantes? Realça-me os olhos?

- Os teus olhos são lindos… não precisam de ser realçados…

- Adoro quando dizes isso… deixa-me limpar-te um pouco, estás a ficar baço…

- Pompeu?... Pompeu?

O pavão Pompeu acabou de alisar as penas, o bico ainda salpicado de brilhantes.

- Sim, Pompilia, minha querida… estou aqui…

- Estava a ouvir a tua voz… estás falando com alguém?

Pompilia, a pavoa, assomou à porta.

- Não, minha querida… estava só eu… aqui sozinho, defronte do espelho… tratando de uns pormenores, nada mais…

( Silêncio )

- Pompeu?

- Sim, Pompilia?

- Tu não estavas… de novo… a falar com o espelho, pois não?

- Oh, Pompilia, claro que não… como pudeste pensar uma coisa dessas?

- Sei lá… tive um pressentimento…. Afinal de contas… és um pavão…

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Notícia de última hora


Notícia de última hora:

Foi hoje a enterrar o senhor José da Silva, empresário, 38 anos de idade. Segundo fonte bem informada, a morte ocorreu há 3 semanas atrás e só foi detectada pela falta de pagamento do serviço de Internet. A vítima vivia e encontrava-se sozinha em casa, caída sobre a mesa, as mãos ainda no teclado do computador. O ecran exibia a página de perfil do Facebook do senhor José da Silva, onde consta que este possuía 478 amigos. Nenhum deles compareceu ao funeral.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Diana

( Desenho do Carlos, da escola EB1 da Moita )


- Pai, pai, pai… - e correu para ele, os braços bem esticados, a mochila da escola a desequilibrar-lhe os passos.

- Não corras… olha que ainda cais…

O pai aguentou o embate e ergueu-a no ar, como sempre fazia quando a ia esperar à saída da escola.

- Estás linda, filhota… muito, muito, muito linda… foste tu que fizeste a trança no cabelo?

Ela abanou a cabeça.

- Não, desta vez foi a mãe, ela diz sempre que as minhas tranças ficam muito tortas… mas não ficam, pois não? Eu sei fazer tranças…

- Claro que sabes, filhota… tu sabes fazer tudo… e porque vens hoje toda corada? Estiveram mais tempo no recreio que o habitual?

Diana, bem empertigada nos seus dez anitos, apontou-lhe o dedo directo ao nariz.

- Oh, pai… hoje foi dia de fazer cartões, lembras-te? Eu já te tinha dito.

- Cartões?

O pai ainda tentou vislumbrar alguma data festiva… mas Fevereiro não era mês de aniversários, pelo menos da família ou amigos mais chegados.

- Não… não me estou a lembrar de nenhuns cartões… e para que são?

A Diana torceu o nariz.

- Para o dia dos namorados, é claro… estivemos todos a fazer cartões para entregar no dia dos namorados.

- Ahhh… muito bem… pois, tens razão, já nem me lembrava… olha, dá cá a mochila e senta-te bem… aperta o cinto…

Sentou-se ao volante, a filha no banco traseiro, do lado oposto.

- Hoje posso jantar contigo em tua casa?

- Claro que podes, filhota… podes sempre. Só tens que avisar a mãe, pode ela ter outros planos… e agora conta-me lá sobre esses cartões que fizeram… como era o teu?

- Cor de rosa e branco… desenhei uma flor com muitas pétalas… e depois escrevi as letras do nome dele em cada uma das pétalas…

- Que bela ideia… uma flor com nome… e que flor era? Uma rosa? Uma tulipa? De que cor?

- Oh, pai… era um malmequer… é mais fácil escrever nas pétalas de um malmequer, não sabias? Nunca fizeste um cartão de namorados?

Nem sempre as perguntas das crianças eram fáceis de responder; as de Diana, habitualmente, requeriam uma certa dose de engenho e criatividade na resposta.

- Sabes filhota… - lá se ouviu a responder - na verdade nunca escrevi letras nas pétalas de um malmequer… e tenho pena, porque teria sido uma excelente ideia…

Ela riu, excitada. Ainda não contara tudo.

- E sabes o que eu escrevi no cartão que a professora nos deu? Escrevi assim… “ Miguel, eu gosto muito de ti, tens olhos bonitos e és muito simpático”

O pai tentou manter a compostura, lançando-lhe um olhar ternurento.

- Que lindo, filhota… e quem é o Miguel? O teu namorado?

- Não é bem… o Miguel é aquele menino que veio de fora…

- Ah… mudou-se para cá há pouco tempo? Eu conheço os pais?

- Não… não deves conhecer… ele é baixinho… tem óculos… e tem um problema na fala…

Foi a vez do pai franzir a testa.

- Um problema na fala? Como assim?

- Pois… ele troca as letras, sabes? Em vez de dizer “melro”… ele diz “merlo”…

- Hum… coitado, isso é um problema… e a professora, ajuda-o nos trabalhos?

- Claro… ele tem uma professora auxiliar só para ele… e tem aulas especiais, ele às vezes conta-nos…

- Muito bem, filhota… e então? Ele é teu amigo? Brincam juntos?

Diana exultava.

- Ele fez um cartão para mim… e não se enganou nas letras, nem nada. E fez um desenho, também… queres ver, pai?

E sem esperar pela resposta, lá desdobrou o pequeno cartão, lendo:

“ És o meu amor. Amo-te”… e desenhou um coração com uma seta.

O pai estacionou o automóvel e lá pode enfim virar-se para trás.

- Muito bonito, filhota… fico muito contente… só estava a pensar nisso que disseste dele ter esse problema na fala…

- É verdade, pai… e sabes o que ele me disse, hoje no recreio?

O pai deixou-se rir.

- Pois… não… nem imagino o que tenha sido… conta lá…

- Ele disse que eu sou “ A menor e a mais ninda do lundo”…

O pai tentou descodificar – ainda trocou mentalmente algumas letras de posição, anagramas, mas a pequena Diana nem lhe deu tempo para terminar.

- Ele disse que eu sou a melhor e a mais linda do mundo… oh, pai… ele é tão querido…

O pai abanou a cabeça, embevecido.

Que importância teria uma criança de dez anos sentir-se infantilmente apaixonada? Nenhuma, era algo de banal, deliciosamente banal. Diana era inteligente, despegada das coisas, pacífica. Ultrapassara o divórcio dos pais reivindicando para si o privilégio de ter duas casas, duas famílias, duas camas, dois animais de estimação. Não era a mais popular da turma, nem a mais vistosa, tão pouco a mais alta; era simplesmente aquela a quem os rapazes mais velhos procuravam para pedir informações sobre as amigas, aquela a quem a professora pedia para escrever redacções sobre o dia-a-dia na escola, aquela a quem as amigas confiavam os pequenos segredos.

A Diana era só aquela que conseguia ver encanto num rapazinho baixinho, de óculos e com problemas na fala.

Ela continuava sorridente, o papel com um coração desenhado a bailar-lhe nas mãos.

- Oh filhota… - lá foi o pai dizendo, após uma longa pausa – sabes o que eu te digo, sabes? Para mim… tu também és… e serás sempre… a “ menor e a mais ninda do lundo”…

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Luisa, a Restauradora



- Minha senhora… o seu chá…

Dona Luísa olhou para ela, distante e pensativa.

- Obrigado, Carmen, pode deixá-lo aí mesmo…

A velha ama pousou o tabuleiro sobre a mesa, ajeitou a chávena, o bule de porcelana, o mel, a geleia de amora. Disfarçadamente, tapou o pequeno pedaço de papel com a taça do mel, deixando à vista simplesmente uma das pontas. Em seguida, acercou-se vagarosamente da duquesa, o naperon de bordados pendurado do braço.

- Ainda estais preocupada… e indecisa?

Dona Luísa de Gusmão acenou com a cabeça, os lábios contraídos num nervoso mal disfarçado.

- Estou sim, Cármen, estou… muito indecisa… e meu esposo, o duque… conta com a minha opinião…

- Vosso esposo, o duque D. João é uma pessoa sábia… e preza muito vosso conselho, senhora.

Dona Luísa concordou.

- É verdade, minha ama, o que dizeis… o que mais me aflige ainda, pela responsabilidade do que me é pedido… um conselho, uma opinião… que o coloca em perigo, a ele e a todo o reino…

A velha ama sorriu, enigmática. Cármen Velasco y Giron - ama de leite da duquesa – era uma daquelas mulheres de presença austera e sisuda, firme de postura e inabalável de convicções. Acompanhara dona Luísa aquando do seu casamento com o fidalgo D. João de Bragança, permanecera ao seu lado nas boas e nas más horas; como ama de leite, conhecia-lhe os pensamentos, ajudara-a nas primeiras letras, embalara-a com canções e afagos.

Dona Luísa Francisca de Gusmão, herdeira da poderosa casa de Lacerda – os senhores da Andaluzia espanhola - era uma jovem formosa e de temperamento quente, resoluta nas acções.

Quando o pai, João Peres de Gusmão, lhe comunicou o contrato de casamento com o fidalgo português, fez algo de impensável: disse Não.

- Não vos precipiteis, senhora… - aconselhara na altura a velha ama - … e vede primeiro com os vossos olhos tal fidalgo. Sede paciente…

Dona Luísa de Gusmão esperara.

Quando lhe foi dada a oportunidade de conhecer o fidalgo português… algo sucedeu. O encontro decorreu em Elvas, onde viriam a casar pouco tempo depois; e o que seria um mero casamento de conveniência, pensado pela duquesa de Mântua, vice-rei de Portugal, transformou-se num casamento de amor. Dom João era um jovem romântico, galanteador por natureza, um pouco indeciso de acções. Dona Luísa, decidida, complementava-lhe o carácter, aplacava-lhe as fúrias, encorajava-lhe as decisões.

Naquele momento… sabia que o esposo, mais que nunca, contava com o seu apoio, necessitava dele. Na noite anterior, o paço ducal de Vila Viçosa engalanara-se para receber o distinto Dom Miguel de Almeida, da casa de Abrantes. E em pleno jantar, quando o velho fidalgo ergueu o copo e brindou, exclamando “ Ao futuro rei de Portugal “… Dona Luísa sentiu o olhar do esposo, a dúvida estampada no rosto, pedindo-lhe sábio conselho. Sorrira-lhe simplesmente, naquele jeito já íntimo de dizer que mais tarde conversariam sobre o assunto.

E assim seria.

- Minha senhora… beba o seu chá… que arrefece… eu vou às cozinhas, ver se está tudo em ordem…

A velha ama não esperou pela resposta e saiu de mansinho, deixando Dona Luísa entregue aos seus pensamentos.

- Sim, minha ama, ide…ide…

Encheu a chávena de chá e serviu-se do mel..

Foi então que reparou no pequeno papel cuidadosamente dobrado, assomando sob a taça de porcelana.

Desdobrou-o e a caligrafia apurada da velha ama encheu-lhe de repente o espírito. Uma simples frase, naquele jeito tão peculiar que ela sempre utilizara, conseguindo com palavras simples explicar factos e pensamentos nem sempre tão simples.

Dizia simplesmente:

“ Antes rainha por um dia… que duquesa toda a vida.”

Dona Luísa de Gusmão sorriu.

Corria o dia 30 de Novembro do ano da graça de 1640.

Bebeu em gole de chá e ergueu-se, subitamente desperta para uma tarefa urgente.

O esposo, Dom João, esperava o seu sábio conselho.

E ela já sabia o que lhe dizer.

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Nota: Tenho por Dona Luísa de Gusmão, espanhola por nascimento e rainha de Portugal por devoção, uma especial simpatia, bem para além do facto do seu casamento se ter realizado em Elvas… e de se ter tornado, como rainha, a senhora das terras de Óbidos, Caldas da rainha e Salir do Porto, entre outras.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Regresso à inocência...


That's not the beginning of the end
That's the return to yourself
The return to innocence

Refrão do tema “Return to innocence” do grupo Enigma

Deu consigo a pensar naquele refrão, uma e outra vez. O regresso à inocência? Uma última infância, antes do final anunciado? O simples voltar a ser criança… como tantas vezes ouvira descrever a velhice?

Provavelmente sim.

Ser velho, nos dias de hoje… era algo de estranho, algo deslocado num tempo feito de novidades, de descobertas, de elixires, onde quase todos os objectos são deitados fora antes de atingir a sua própria velhice, por deixarem de cumprir a sua função… ou simplesmente por destoarem das novas tendências estéticas.

E com as pessoas…

Ajeitou-se sobre o cadeirão – revestido a couro – reminiscência de um tempo de outrora, também ele mais opulento e brilhante.

A enorme sala já acomodara bailes de gala, jantares de Natal, até uma festa de formatura; pintada de verde seco, os tectos trabalhados em rosáceas, o belo candelabro com pingentes de cristal, a réplica de “as ceifeiras” pendurada na parede, as cortinas de matizes violeta a filtrar o sol nas janelas.

E claro… a lareira, aquela lareira emoldurada pelos tijolos vermelhos que lhe traziam inúmeras recordações à memória.

Pouco ou quase nada se alterara, em quase quarenta anos de ausência; as cristaleiras fechadas exibiam ainda as colecções imaculadas de pratas e faianças , o móvel contador de pau santo e fechaduras douradas repousava ainda no mesmo local, o espelho emoldurado a madrepérola também.

Reviu-se a entrar naquele salão, pé ante pé, num quase profanar de um templo sagrado, á procura do objecto mais desejado.

E ele ainda ali permanecia, imponente e sereno, conferindo ao salão um toque único, dificilmente exprimível em palavras.

Um piano.

Um piano de pé, cor castanho mel, encostado à parede oposta da lareira.

- Memórias – pensou – tantas memórias…

O som das primeiras notas devolveu-o à realidade.

Por um instante que teve o sabor de uma eternidade, esqueceu a figura da mãe, dobrada para a frente, os pés pousados nos pedais. Esqueceu a longa doença, todos os dias – semanas até – em que ela nem o reconhecera, confundindo-o com outro qualquer. Afinal de contas – dissera-lhe o médico em tempos – Alzheimer era a única doença conhecida que fazia uma mãe deixar de reconhecer os seus próprios filhos.

Ele sabia como aquela frase resultara verdadeira, dolorosamente verdadeira.

Mas, naquele momento, não queria pensar em nada disso… simplesmente disfrutar… e deixar-se ir. A mãe, muitos e muitos anos depois, sentara-se de novo ao piano e tocava… divinamente, sem pauta ou metrónomo, canto ou acompanhamento.

Tocava, simplesmente…. “ a dança das horas”

Sentiu uma lágrima rebelde a querer despontar.

Sim… como bem dizia a canção… aquilo não era o princípio do fim… simplesmente o regresso à inocência…

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Reclamação


- Tem um cigarro, amigo?

- Não… já me deixei disso faz tempo… e você devia fazer o mesmo…

O outro afastou-se, procurando novo alvo, com a expressão típica de quem queria simplesmente um cigarro, sem lume ou conselhos incluídos.

Estava no seu direito.

Abriu de novo a porta de vidro e o bafo quente da sala de espera embaciou-lhe prontamente os óculos.

- Mas porque colocarão sempre isto no máximo? – resmungou com os seus botões – é sempre a mesma coisa…

Na verdade, era sim, era sempre a mesma coisa; a sala de espera daquele hospital não deveria destoar em nada de qualquer outra – abafada, com excesso de pessoas ansiosas e ruidosa, muito ruidosa.

Sentou-se a um canto, de frente para a televisão. Hora de noticiário; Egipto, violência, revolução, religião, política, carros incendiados, camelos e tanques – não necessariamente por esta ordem, mas a visão não era nova. Ao seu lado, uma mulher mastigava com uma cadência exasperante algo estaladiço, provavelmente um daqueles pacotes de fritos sortidos, acabados de retirar da máquina automática.

- Uma autêntica torre de Babel… - pensou.

Percorreu os rostos mais próximos, indagando-lhes as expressões; Um casal cansado, ele dormitando e ela remexendo nervosamente na mala, um par de crianças coradas pelo calor agarradas a uma consola de jogos portátil, um homenzinho meio coxo carregando furiosamente em todos os botões da máquina de café, sem reparar que a máquina lhe recusara a moeda introduzida na ranhura, uma adolescente teclando mensagens no telemóvel a uma velocidade vertiginosa, um bombeiro a tentar descobrir no guichet onde estava o seu doente.

- É favor fazer menos barulho, que eu não consigo ouvir as pessoas aqui ao guichet…

A funcionária do balcão das informações obteve uns segundos de silêncio, tempo suficiente para voltar ao seu local de trabalho e as pessoas novamente às suas conversas.

Consultou de novo o relógio – oito e quinze; ou seja… oito horas de espera, tendo em conta que chegara ali pelo meio dia, acompanhando o pai. Numa parede, uma folha plastificada anunciava que as pulseiras amarelas – a que haviam colocado no pai – significavam urgência… e com um tempo de espera previsto de uma hora. Enfim… o pai fora atendido duas horas depois… e as restantes seis correspondiam aquele tempo de espera… a espera de informações. E quem espera… desespera.

- Há algo de errado no meio de tudo isto…

Claro que havia algo de errado. Afinal de contas, tratava-se de um hospital público, distrital, sobrelotado. Quando pretendeu chegar à fala com um dos médicos de serviço levou com um “ o médico está com quinze doentes, não pode falar consigo”. Pois claro, se conseguisse seria um super-homem, um super-médico ou algo de semelhante. Mas o certo é que o pai lá continuava deitado numa maca, numa sala que nascera para observar três ou quatro doentes e onde se acotovelavam as quinze macas, num cenário de Dante, por entre gritos de doentes e gemidos de moribundos. Sim, sem dúvida… havia algo de errado no meio de tudo aquilo.

- Como? Não tem moedas? Então como é que posso utilizar a máquina?

- O senhor terá que se deslocar lá fora, talvez num café lhe consigam trocar algumas…

O homem que se dirigira ao guichet pousou a filha no chão, arrumando a carteira.

- Então as máquinas estão aqui… e vocês não trocam moedas? Tenho que ir lá fora para comprar uma garrafa de água para dar à minha filha, é isso?

- Não temos moedas, senhor. É uma empresa de fora que faz a manutenção das máquinas…

O homem pegou na filha ao colo e virou costas.

Ficou a vê-lo afastar-se, ultrapassar a porta de vidro e mergulhar no frio da noite.

Não.

Em definitivo… algo não estava mesmo nada bem.

Talvez fosse o calor excessivo, as oito horas de espera, o ruído de fundo que estrangulava os pensamentos, a irritação da insensibilidade, a televisão, os cheiros de suor e sujidade, os papéis no chão, os sacos de lixo a transbordar, a pose fleumática da funcionária ao guichet, a preocupação pelo estado de saúde do pai; talvez fosse tudo isso ou muito mais… o acumular de mil pormenores que de repente o fizeram sentir como um mero saco de batatas, encostado a uma parede.

Levantou-se e dirigiu-se ao guichet.

A funcionária lançou-lhe um olhar distante e pegou num formulário.

- Nome?

Ele esperou que ela erguesse de novo o olhar.

- Podia facultar-me o livro de reclamações, por favor?

A funcionária pousou a caneta, o livro, tirou os óculos.

- O livro de reclamações? Para quê?

- Pode facultar-me o livro de reclamações, por favor? Não preciso de lhe justificar o motivo… isso será aquilo que eu lá irei escrever…

A funcionária olhou para a colega do guichet ao lado, depois para o homem, depois para a parede e novamente para o homem.

- Sim… mas passa-se alguma coisa? Quer alguma coisa? Não precisa de …

- O livro… se faz favor…

A funcionária ergueu-se e lá foi ao armário respectivo, trazendo na volta o livrinho de capa vermelha.

- Eu vou chamar a chefe do serviço, se quiser…

- Não, não é preciso… basta que me faculte o livro… se faz favor…

Com movimentos hesitantes, lá o recebeu das mãos da funcionária. Abriu-o. Ainda intacto.

- Fantástico… ninguém reclama… - pensou - … será a primeira reclamação…

Pegou no livro, virou-se para a sala de espera e ergueu-o bem acima da cabeça, para que pudesse ser visto por todos. E então, falou:

- Vou preencher uma reclamação… pela falta de condições desta sala de espera e pelas coisas que tenho observado aqui, durante toda esta tarde. Alguém vai querer acrescentar algo aquilo que eu vou escrever?

Primeiro… o silêncio.

Por uns segundos, apenas.

O clamor de vozes que se seguiu abafou tudo.

- Eu, eu, eu… eu

- Eu…

- Eu também…