terça-feira, 17 de maio de 2011

Saudades do Futuro


- Algo está errado… profundamente errado…

Um pensamento insistente, incómodo como uma dor de dentes; uma falha na muralha do espírito.

Passou a mão pela barba rala, num gesto inconsciente que repetia vezes sem conta, de cada vez que se sentava – como naquele momento – entregue aos seus pensamentos.

- Algo está errado… - repetiu num murmúrio.

Ninguém o ouviu.

O entardecer de Maio – igual a tantos outros – sibilava de ventos e trinados de pássaros, de papoilas vermelhas e espigas verde amarelo de trigo e centeio; um céu azul profundo, daquele azul que só os olhos mais azuis conseguem imitar.

Afastou as ervas altas com as mãos, deixando a descoberto os últimos tijolos do que fora, em tempos idos, uma eira.

Não era suficientemente velho para albergar na memória imagens das mulheres peneirando os grãos de cereal sobre aquelas pedras; mas o pai descrevera-lhe o ambiente, apontara a dedo o deambular dos caminhos sinuosos que contornavam aquele monte – nome antigo que significava fazenda ou habitação no cimo de um morro.

Monte dos Albardeiros, assim se chamava.

Talvez pelo extinto oficio dos albardeiros, homens rudes mas de mãos hábeis no trabalhar do couro, na construção de selas, albardas e alforges.

Fosse como fosse… o implacável passar dos anos ditara o abandono, os sons dos rebanhos de ovelhas a dar lugar ao avançar das ervas, ao secar dos eucaliptos e ruir dos telhados.

A antiga eira resistira heroicamente, disfarçada da inclemência do sol pelo manto de ervas e musgos que a camuflavam por completo na paisagem.

Existem lugares assim… que mesmo sendo banais, evocam sensações únicas.

Talvez que outros procurassem o refugio e silêncio no alto de uma árvore, à beira mar, numa auto-estrada, num sótão abandonado, no alto de uma cachoeira. Ele descobrira naquele pequeno círculo de tijolos avermelhados, rodeado de ervas altas, um sereno pedaço do paraíso… e ali se refugiava, sempre que o espírito lhe pedia um pouco de paz e clemência.

Mais um… aniversário, simplesmente isso. Mais um.

Pudessem os desejos ser ouvidos e levados pelo vento… e ele gritaria a plenos pulmões o que lhe ia na alma.

Mas o vento não ouve nem faz eco de mais nada, senão dos próprios passos. E os desejos… ah… de que serviria gritar ao vento os seus desejos?

- Algo está errado…

Há muito que aquelas simples palavras lhe atormentavam os sonhos, como uma sensação indefinível de um grão de areia raspando na engrenagem bem oleada dos dias monótonos e cinzentos que vivia.

Monótonos, cinzentos, inócuos.

Reclinou-se sobre o manto verde e desapareceu sob a linha do horizonte, bem abaixo das espigas, malmequeres, cardos e hortelâs.

Observou sem pressa as primeiras estrelas no céu, o subir da lua no firmamento cristalino.

A sensação familiar de um nó na garganta empurrava-lhe os pensamentos em direcções por desbravar.

Medo do desconhecido?

Medo de arriscar?

Chega um momento… em que a palavra “urgente” assume um peso nunca antes revelado. Talvez fosse tão somente um mero aniversário, é verdade. Ou uma desculpa inconsciente para reflectir sobre o que era… ou aquilo em que se estava a transformar.

Ou uma forma muito criativa de se continuar a enganar a si mesmo.

- Medo do desconhecido… medo de sofrer…

O murmúrio morreu-lhe nos lábios.

Uma estrela cadente rasgou o azul quase negro dos céus, um breve instante de luz desenhado a fogo sobre o manto de estrelas. Um desejo por conceder.

Um desejo.

Porque não? Um desejo, um mero desejo, um único desejo, em simples desejo.

Porque não?

Fechou os olhos e cerrou os punhos, num combate imaginário contra os deuses e o destino.

- Desejo que…

O vento não amainou, as criaturas da noite não interromperam os seus afazeres, a lua não se tornou mais brilhante nem as estrelas mais incontáveis nos céus. Nada mudou naquela penúltima noite de Maio, senão talvez a inquietação do espírito.

A vida é feita de opções, dizem.

Algumas certas, outras erradas, outras incertas.

Mas acima de tudo.. é feita da capacidade de mudar, de transformar, de refazer, de aperfeiçoar ou de simplesmente … criar algo de novo, diamante bruto de cinzas feito.

E também.. de voltar atrás, não aquele voltar atrás em busca de passados já gastos… mas o voltar atrás para apanhar do chão os diamantes que por vezes se jogam fora, pensando ser vidro baço.

E entretanto… eis que desponta a manhã…

6 comentários:

  1. Algo está errado quando pretendemos demais da vida e a decepção se torna inevitável.

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  2. Algo está errado se não se gosta destas divagações... :)A vida é feita dessa capacidade de adaptação e mudança, crescimento e evolução... :)Beijinho

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  3. Viver não é esperar a tempestade passar .... é aprender a dançar na chuva...
    Sempre existirá "prós e contras"... yin e yang.
    Nada, nunca, será perfeito.
    Só precisamos saber o que queremos, realmente, do fundo do coração e então seguir sem medo de errar, pois errar faz parte.
    ... Por medo de chorar, deixamos de sorrir....

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  4. podemos sim, refazer nossos ideais, mudando o que nos incomoda..
    basta ter amor no coração..

    bjs.Sol

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  5. Rolando,

    Esse personagem seu, se parece comigo.
    E assim como ele, tenho saudades do futuro.
    E uma certeza, tudo pode mudar. Sempre.

    Cadê seu livro?

    Um abraço, amigo!
    Tudo de bom para ti também.

    Gislene.

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  6. VERDADE PARA QUANDO O LIVRO????

    EU SOU ÍGOISTA, E QUERO UM DOS PRIMEIROS E AUTOGRAFADO....
    DEPOIS COMOMERAMOS, COM LINGUÍSSINHA GRELHADA, ACOMPANHADA POR UM VINHO Á TUA ESCONHA, COM O CAFÉ, EU ESCOLHO O PÃO DE RALA E A GINJINHA DE ÓBIGOS.

    OK??????

    :-) BJS.
    M.M.G.

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