sábado, 5 de fevereiro de 2011

Regresso à inocência...


That's not the beginning of the end
That's the return to yourself
The return to innocence

Refrão do tema “Return to innocence” do grupo Enigma

Deu consigo a pensar naquele refrão, uma e outra vez. O regresso à inocência? Uma última infância, antes do final anunciado? O simples voltar a ser criança… como tantas vezes ouvira descrever a velhice?

Provavelmente sim.

Ser velho, nos dias de hoje… era algo de estranho, algo deslocado num tempo feito de novidades, de descobertas, de elixires, onde quase todos os objectos são deitados fora antes de atingir a sua própria velhice, por deixarem de cumprir a sua função… ou simplesmente por destoarem das novas tendências estéticas.

E com as pessoas…

Ajeitou-se sobre o cadeirão – revestido a couro – reminiscência de um tempo de outrora, também ele mais opulento e brilhante.

A enorme sala já acomodara bailes de gala, jantares de Natal, até uma festa de formatura; pintada de verde seco, os tectos trabalhados em rosáceas, o belo candelabro com pingentes de cristal, a réplica de “as ceifeiras” pendurada na parede, as cortinas de matizes violeta a filtrar o sol nas janelas.

E claro… a lareira, aquela lareira emoldurada pelos tijolos vermelhos que lhe traziam inúmeras recordações à memória.

Pouco ou quase nada se alterara, em quase quarenta anos de ausência; as cristaleiras fechadas exibiam ainda as colecções imaculadas de pratas e faianças , o móvel contador de pau santo e fechaduras douradas repousava ainda no mesmo local, o espelho emoldurado a madrepérola também.

Reviu-se a entrar naquele salão, pé ante pé, num quase profanar de um templo sagrado, á procura do objecto mais desejado.

E ele ainda ali permanecia, imponente e sereno, conferindo ao salão um toque único, dificilmente exprimível em palavras.

Um piano.

Um piano de pé, cor castanho mel, encostado à parede oposta da lareira.

- Memórias – pensou – tantas memórias…

O som das primeiras notas devolveu-o à realidade.

Por um instante que teve o sabor de uma eternidade, esqueceu a figura da mãe, dobrada para a frente, os pés pousados nos pedais. Esqueceu a longa doença, todos os dias – semanas até – em que ela nem o reconhecera, confundindo-o com outro qualquer. Afinal de contas – dissera-lhe o médico em tempos – Alzheimer era a única doença conhecida que fazia uma mãe deixar de reconhecer os seus próprios filhos.

Ele sabia como aquela frase resultara verdadeira, dolorosamente verdadeira.

Mas, naquele momento, não queria pensar em nada disso… simplesmente disfrutar… e deixar-se ir. A mãe, muitos e muitos anos depois, sentara-se de novo ao piano e tocava… divinamente, sem pauta ou metrónomo, canto ou acompanhamento.

Tocava, simplesmente…. “ a dança das horas”

Sentiu uma lágrima rebelde a querer despontar.

Sim… como bem dizia a canção… aquilo não era o princípio do fim… simplesmente o regresso à inocência…

10 comentários:

  1. Ronaldo
    Que lindo! Memórias são algo tão bom que nos aconchega...

    bjos
    Anne

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  2. Anne,

    Sim... as memórias embalam-nos os sonhos. Os afectos persistem. As pessoas partem... e algo fica.

    Beijos

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  3. Rolando...

    a ciranda da vida...
    porque como diz a canção "chegar e partir são só dois lados da mesma moeda"...

    texto muito sensível... retratou lindamente o passar do tempo... enterneceu meu coração, afinal, amanhã todos nós estaremos diante daquele piano...

    magnífico...

    beijo carinhoso

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  4. Ah, Solange...por vezes fica dificil falar desses dois extremos da vida, não é? Como se quem estivesse no meio só soubesse falar do presente... e afinal... aquele piano é só um futuro-quase-presente...

    Beijos e eucaliptos.

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  5. “That's not the beginning of the end
    That's the return to yourself
    The return to innocence”

    Em todos nós habita uma criança... e é tão bom quando regressamos à inocência e damos a mão à nossa criança interior., deixando-nos embalar por toda a sua pureza, sinceridade... ingenuidade...

    Como as letras de várias músicas tem tantas mensagens para absorver... Já lá vão uns bons anos desde que ouvi a última vez esta música dos Enigma. Gostava muito e, se não me falha a memória, esta frase era dita por uma voz feminina...

    Obrigada pelas visitas ao "Luz é" e ao "Keep your mind wide open". Logo que possa, vou incluir a tua magnífica foto. E dizes tu que não tens jeito com as palavras... com estes lindos posts!

    Sê sempre bem-vindo!

    Beijinhos na ponta de um arco-íris dourado ♥
    Rita

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  6. Todas as palavras revestidas de muita beleza Rolando e a mão ao piano é a pura inocência .
    Amo textos que leio e quero reler , sentir,permanecer. E a cada novo leitura novas descobertas .Como nos filmes que de tão bons queremos ver de novo e muitas vezes .
    É isso Rolando a "dança das horas"
    ou a contradança em outro ritmo

    deixo os abraços

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  7. Meu amigo

    Tinha saudades de passar aqui, adorei o texto como sempre as palavras discorrem...e fazem voltar no tempo...e como era bom voltar à inocência...ou não...não sei.

    Deixo um beijo e gostei de o ler novamente
    Sonhadora

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  8. Rita...
    Gostei quando escreveste que em cada um de nós habita uma criança... é verdade, sim.
    Por vezes, sentimos essa criança a despertar cá dentro...

    Beijos, volta sempre

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  9. Lis,

    A musica... consegue o impossível, não é? Unir o passado e o presente, trazer de volta a infância...

    Beijos

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  10. Sonhadora,

    Bom estar de volta, também...e voltar à inocência? Não tenho a certeza, espero que todos os tempos sejam o tempo certo... e que este também o seja...

    Serve-te de um café fresquinho, está ali ao fundo...

    Beijos

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