quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A sauna das almas


Nota introdutória: A frase inicial não é minha, mas sim da Lis, no comentário ao post de ontem. Gostei muito do sentido... e sem dar por isso, estava a escrever uma história... Obrigado, Lis.


“ … a alma da gente se abre como mexilhões no vapor…”

Quando decidira aceitar o convite… nunca pensara que a frase pudesse ser algo mais que uma inspirada metáfora. Mexilhões, vapor… sim, a ideia de um banho turco, talvez… mas a temperatura estava a tornar-se já um pouco incomodativa…. Suava por todos os poros.

- Menina… por favor… - e esticou o dedo, naquele gesto característico de quem chama o “garçon”.

A funcionária, muito atraente na sua bata branca e decote a condizer, aprestou-se, toda solícita.

- Sim, senhor Roberto, diga-me… precisa de algo?

O dito cliente soltou um lamento, vagamente semelhante a um suspiro.

- O calor… não aguento mais… estou morrendo…

- Oh, senhor Roberto… claro que não está morrendo… então não vê todos os seus amigos ali ao lado, satisfeitos e de conversa? Acha que eles também estão morrendo?

- Mas eu estou, menina, eu estou… a temperatura nesta zona está terrível… o vapor… não aguento mais…

Ela sorriu e ajeitou-lhe melhor o pesado livro de capa dura sobre o peito.

- Sabe bem que é só a sua imaginação a trabalhar, senhor Roberto… vá, continue a sua leitura, está indo muito bem… em que página vai?

- … ainda mal comecei… estou a rever a parte da adolescência, quando fugi de casa…

- Ah, deve ser por isso… não se preocupe… a sua alma aguenta… vai ver que quando passar para outra página do livro essa sensação de calor desaparece, acredite…

E afastou-se, para virar a página de outro cliente.

O senhor Roberto ainda tentou esticar de novo o dedo, mas sem resultado.

- Onde me vim eu meter? Onde me vim eu meter? – murmurou aflito, grossas gotas de suor a escorrer da alma, as toalhas já bem empapadas do exorcismo das memórias.

“ … a alma da gente se abre como mexilhões no vapor…”

Quando a amiga lhe falara daquele local, imaginara uma sauna. Nunca imaginara que estaria deitado num confortável cadeirão, lendo a história da sua própria vida, profusamente ilustrada com imagens, sons e aromas. Onde teriam eles encontrado tudo aquilo… pormenores íntimos, obscuros e alguns até insignificantes que ele já esquecera há muito? Fosse como fosse, ali estava ele, rodeado de uma multidão de outras almas, cada qual com um pesado livro de capa dura pousado sobre o peito, página aberta sobre um instante do passado, relendo as memórias da sua vida, exorcizando temores e perscrutando o sentido da vida… da sua própria vida.

Era esse o objectivo.

Um ardor salgado embaçou-lhe a vista. Alcançara uma página do livro onde se revia bem mais jovem, oferecendo um ramo de flores a alguém.

Memórias.

Era esse o verdadeiro sentido para aquela sauna de almas, o lavar das memórias, o secar das mágoas.

Porque é bem certo que de nada adianta lavar o corpo… e esquecer de lavar a alma.

Percebeu isso. E assim, fechou os olhos… e deixou-se ir.

9 comentários:

  1. Dizia: Não me importei. O céu abriu-se e era a coisa mais linda que tinha visto. Havia anjos à minha espera, muitos anjos para me receber.
    No entanto não consegui lá entrar. Não podia. Não podia partir sem antes ligar a pedir à minha filha para tomar conta do pai.

    Hoje ao ler-te escutei a voz da minha mãe. Calma. Tranquila. Suave.

    Amo-a por ser minha mãe. Mais ainda pela sua infinita bondade e generosidade.

    Abraço

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  2. Lavar a alma é viajar pelas memórias como se fosse voando por cima e vermos a vida a desenrolar...

    Lindo conto!
    bjos
    Anne

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  3. "Porque é bem certo que de nada adianta lavar o corpo… e esquecer de lavar a alma."
    A maior parte das pessoas esquece-se disso, pois custa ir "mexer" no passado. nem todos estão dispostos a isso.
    Adorei a forma como desenvolveste a história. Muito bom.

    Beijinhos

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  4. A mistura de memórias e de palavras chave que as espevitam, desfiam neste texto.

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  5. Rolando...,
    Li...
    e só desejo, que um dia possa partir com a alma lavada, e cheia de amor...

    BJS:

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  6. Gostei da imaginação neste texto e de como está escrito.

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  7. Hoje, li.
    E o vapor limpa as almas?
    é melhor ir prevenido com um bom gel de banho...


    Um abraço.

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  8. Rolando,

    Tenho procurado lavar a minha alma por aqui mesmo, antes do banho final... Nem sempre é fácil, mas desenvolvi um método infalível: fazer ao outro o que gostaria que fosse feito a mim... Isso torna a travessia mais leve! Excelente texto para provocar reflexões. Parabéns!

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  9. Oi Rolando
    Lisonjeada sim porque nao? uma frase , um texto "demais ", uma inspiração e a minha pequenina participação. Obrigada.
    como diz Salvador Dali : "...o tempo é um relógio", urge quebrar algumas regras e deixar a alma queimando em vapores que certamente fará a vida soprar de novo, refeita , limpa e com alguma nova esperança.
    um abraço

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