terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A primeira vez...


A primeira vez.

Há sempre algo de mágico na primeira vez de qualquer coisa – pensou. O primeiro respirar, o primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro amor, a primeira viagem, o primeiro filho…

Naquele momento, porém… se pudesse traduzir em palavras a amálgama de sentimentos que o percorria, não escolheria a palavra “magia” para os descrever – talvez antes ansiedade, medo, pânico.

Pânico, sim… verdadeiro pânico.

E no entanto… há muito que desejara aquele momento, sonhara com ele durante meses a fio, todo o tempo entre o preencher dos papéis, os formulários de candidatura, todos aqueles códigos de escolas… até ao momento da publicação das listas… até ver o seu nome no meio de todos os outros, com o nome de uma escola… o nome da escola onde daria a sua primeira aula… da sua futura vida de professor.

Mas – dirão vocês – o que tem isto assim de tão especial? Claro que teria que existir uma primeira vez… uma primeira escola.

É verdade, claro.

Mas ainda não vos contei tudo; o jovem Roberto, diploma de curso ainda fresco pendurado na parede do quarto fora colocado para leccionar o seu primeiro ano de profissão… precisamente na sua terra natal, na escola onde estudara durante toda a adolescência.

Conhecia daquele edifício todos os recantos, e todos os recantos tinham histórias para contar. Ali fizera grandes amigos, ali se apaixonara pela primeira vez, ali arranjara uma cicatriz na perna – resultado de uma briga com um colega – ali fumara às escondidas o primeiro cigarro.

Recordações, muitas recordações.

Mas para além disto tudo… ainda existiam… os professores. Sim, claro… teria que arranjar umas gramas extra de coragem para chamar “colega” a alguns dos seus velhos professores, ainda em exercício de funções. Não sabia bem como… quando chegasse a altura, logo se veria.

E como se tudo isto não bastasse… ainda sobrava mais um pormenor. Mas enfim… esse último pormenor… só quando ouvisse o som familiar da campainha a anunciar a primeira aula…

Nervosamente, atravessou a rua e galgou o portão. A dona Gracinda, sempre prestável na portaria, lançou-lhe o melhor dos sorrisos. Ele retribuiu – não se lembrava de a ver sorrir assim, nos seus tempos de aluno. Será que só sorria para os professores?

O hall de entrada. Ah… estava praticamente na mesma, as paredes ainda pintadas de branco e rosa, os rodapés de azulejo antigo, vestígios de um tempo em que todo o edifício, antes de ser escola, fora a residência de um morgado abastado da terra. As escadas… sim, claro, dois lances de vinte e cinco degraus cada, um pequeno patamar a separá-los. E finalmente… o longo corredor, soalho de madeira, portas dos dois lados, as salas de numero par de um lado, impar do outro.

Evitara a sala de professores naquele primeiro momento. Havia tempo, muito tempo.

A sua atenção estava concentrada sobre a última porta do corredor, a sala numero sete.

Desdobrou pela enésima vez o horário que lhe havia sido atribuído e não havia engano; segunda feira, primeiro tempo da manhã, sala sete, turma B do décimo segundo ano. E em anexo, uma lista dos alunos da turma, acompanhada das respectivas fotografias.

Pelo canto do olho, reconheceu alguns dos rostos, ao longo do corredor. Seriam miúdos na altura… agora finalistas, o tempo passara depressa.

O tempo… quanto tempo?

Não era difícil fazer contas… os anos de universidade na capital, tempo mais que suficiente para a renovação completa de toda aquela massa humana. Toda? Bem, não forçosamente toda… ainda existiam aquele punhado de resistentes, que de ano a ano lá renovavam a matricula, umas vezes desistindo a meio, outras vezes reprovando nos exames, por vezes mesmo sendo excluídos por excesso de faltas. Enfim… nada que não acontecesse em todas as partes, em todas as escolas.

Sem dar por isso, alcançara a porta da sala sete. Uma vintena de rostos curiosos acotovela-se para observar de perto a cara nova. Ele abriu a porta e entrou, olhando distraidamente para o quadro, fazendo-lhes sinal para que o acompanhassem.

No meio da normal algazarra de um primeiro dia de aulas, lá foram entrando a conta gotas pela porta estreita, qual ponte levadiça de um castelo bem protegido.

Ele apoiou-se sobre a secretaria, ficando a observá-los – alegres e faladores – desmanchando as mochilas, exibindo os headphones, comparando os gorros, bonés e os ténis último modelo acabados de sair no mercado.

Não o podia evitar por mais tempo e lá levantou os olhos, meio envergonhado, em direcção à última fila de cadeiras. Já sabia de antemão o que iria encontrar, o coração saltara-lhe pela boca quando passara os olhos pela lista de alunos da turma, nem precisara de ver as fotografias.

E ali estava ela.

Encontrou-lhe o olhar e sorriu, meio atrapalhado por tão improvável reencontro. Mas a vida é feita de coincidências, sinais, ou o que lhe quiserem chamar. E quis o destino ou o acaso que a Fátima, sua colega de carteira durante vários anos, agora ali se encontrasse, a aluna mais velha da turma, depois de um interregno de algum tempo sem estudar e de um outro ano em que desistira a meio.

Separados… e novamente reunidos, numa sala onde no passado tantas e tantas vezes haviam rido, conversado, estudado. Até houvera um tempo, de saudosa memória, em que ele quase, quase… mas não, nunca teria resultado, tudo não passara de uma paixoneta da adolescência.

E agora… ali estava ela, perturbadora e de sorriso indefinível, sentada na última fila, aguardando que ele, agora professor, fizesse a tradicional chamada.

Era aquele o momento que ele mais receara.

Inspirou fundo, como quem procura alento para a batalha. A primeira batalha.

Pousou o livro de ponto sobre a mesa. Não… não lhe apetecia começar o resto da vida chamando os alunos um a um, conferindo-lhes o nome e a fotografia.

- Bons dias a todos… para aqueles menos curiosos e que ainda não me conhecem… o meu nome é Roberto, Roberto Paulino e … nesta sala, a minha cadeira era aquela ali ao fundo… ao lado da vossa colega… Fátima…

Ela sorriu, os olhos da turma momentaneamente desviados na sua direcção.

Roberto, o professor, atalhou-lhes os planos.

- … Exactamente… era ali o meu lugar… e garanto-vos que fui muito feliz ali. Claro que de vez em quando apanhei alguns sustos e…

Deixou-se embalar. Por um segundo, pensara não conseguir. Evitar olhar para ela, evitar o nervosismo, tropeçar nas palavras… mas afinal… era mais fácil do que pensara, era quase como contar uma história, uma história que tivesse que inventar de propósito para adormecer alguém. Claro que ali o objectivo não era o de adormecer ninguém… mas simplesmente o de encantar, cativar, seduzir… e espicaçar a curiosidade de todos aqueles rostos expectantes.

- Ok… antes que alguém pergunte, pergunto eu… há alguém aqui que faça anos no mesmo dia que eu?

A turma trocou olhares de surpresa. Difícil de responder, tendo em conta que para tal seria necessário saber a data de aniversário dele.

Uma rapariga ruiva da segunda fila lá arranjou engenho para se arriscar:

- Depende, não é? A gente não sabe em que dia é que o s’tôr faz anos…

Ao fundo, Fátima mal conseguia conter o riso. Sim… aquele era o Roberto que ela recordava bem… e sim… fora bom tê-lo como colega, certamente seria igualmente bom tê-lo como professor…

Ele piscou-lhe disfarçadamente o olho, como que a perguntar: “ Que tal me estou saindo?”

Ela sorriu-lhe de novo e mexeu os lábios em surdina:

- Bem… vais muito bem…

8 comentários:

  1. Bom dia, Rolando!

    Que lindo conto.
    É, na vida há os que ficam, os que vão.
    E reencontros muitas vezes acontecem, sem serem planejados.
    A roda da vida.
    Recordações vem à tona.
    Como é bom recordar, apesar de tudo ter mudado...

    Adorei, amigo!
    Obrigada por ter voltado.

    Um abraço,

    Gislene.

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  2. Saudades dos tempos de escola... e sabem tao bem "certos" reencontros!!

    A vida evolui e as pessoas mudam, mas acredito que há sempre algo que se mantém, mesmo que por vezes nao o queiramos admitir... e sendo assim, sabe bem recordar e reencontrar ;)

    Beijinhos

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  3. Palavras para quê...,
    Só que estar aqui a lêr, é estar lá, quando não sabía lêr! Amei voltar á escola com o tua narrativa.
    E a lareira já acendes-te?
    Boa, levo os bolos para tomarmos um café em seu redor, e ouvir tuas histórias.
    BJS.

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  4. OOiii, Rolando

    Que bom te ver de volta, amigo!
    Lindas palavras! Todas as nossas primeiras vezes são marcadas de muitas expectativas... isso é o bom "da coisa"!!!

    Tenho boas lembranças do meu tempo de aluna, sempre adorei estudar. Existem professores que deixam a sua marca pra sempre na gente, seja pelo falam, seja pelo que ensinam, seja pelo exemplo que são!



    Obrigada pelas palavras tão lindas que deixaste no meu Encantaventos. Tb te desejo um 2011 iluminado, cheio de sucesso e realizações...
    pelo mar revolto da fotografia... vejo que este teu ano promete! :))


    Bjão

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  5. Gislene... verdade, as memórias são feitas ( algumas ) de algodão doce, outras simplesmente de ar. Mas são nossas, pertencem-nos...

    Beijos, amiga

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  6. Ah, Sara, dizes bem, os tempos da escola... há quem diga que é aí que encontramos os tais amigos para a vida. Provavelmente é... e concordo contigo, a vida é feita de encontros e reencontros, alguns dos quais com um sabor mais especial...

    Beijos, Sara. Está tudo bem contigo, aí nesse frio ?

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  7. Maria... esta fogueira já crepita calor, estou tentando fazer café em quantidade suficiente para nós todos...

    Um beijos, amiga, dás um aperto por mim no Galvão?

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  8. Wania... eu é que agradeço, e muito, teres passado por aqui. Esta praia precisa daquele jeito que só tu tens, de em meia duzia de linhas cantares um mundo inteiro.

    Tudo de bom para ti, amiga

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