quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lara tinha um sonho...


Lara tinha um sonho; um sonho antigo, do tempo em que ainda sonhava a cores, deitada no berço em forma de concha, branco pérola.

Sonhava ver… o mar.

O mar era – diziam os velhos da aldeia – uma coisa grande, imensa de azul, um horizonte de água que não acabava nunca, para onde quer que a vista se perdesse. O mar era povoado de monstros, de gigantescas serpentes e seres demoníacos, de sereias enfeitiçadoras de homens, que engoliam embarcações inteiras e as devolviam à praia destruídas em minúsculos grãos de areia.

Tudo isso Lara ouvira na sua infância, durante as brincadeiras no recinto da escola, nas conversas de café, nos relatos do pastor Josué, que antes de ser pastor já fora pescador. E Josué contava, sempre de copo de rum na mão, a terrível luta que travara com um desses monstros marinhos, que lhe levara a perna direita. Às vezes, no calor da refrega, esquecia-se de pormenores, trocava a perna direita pela esquerda, confundia-se com o tamanho e aspecto do terrível monstro que o atacara, mas todos lhe perdoavam os exageros – afinal de contas, Josué perdera mesmo uma perna, que importância tinha se o monstro tinha mais ou menos metros de comprido, fumegava pela boca ou pelas narinas? Importância nenhuma.

- Mas porque não posso ir ver o mar, mãe? Todos dizem que são só alguns dias de viagem… e é o que eu mais quero na vida, sempre desejei, sempre…

A mãe franzia o nariz e voltava às lides da casa, repetindo-lhe o “não” costumeiro.

- Porque não… ainda és muito nova para abandonares a aldeia sozinha… e que ideia tão ridícula é essa de querer ver o mar? Eu tenho o dobro da tua idade, nunca vi o mar e olha para mim… achas que me fez alguma diferença?

Fazia.

Fazia muita diferença.

Gioncela, a mãe de Lara, era ainda uma mulher jovem, mal entrada nos quarenta. A vida rude dos campos tisnara-lhe o rosto de rugas escuras de tanto sol e calejara-lhe as mãos da enxada. Enviuvara cedo – dizia – apesar de ninguém na aldeia lhe conhecer qualquer familiar. Muitos anos atrás, numa noite fria de inverno, chegara descalça e com uma criança envolta em panos nos braços. Lara.

A viúva do padeiro abrigou-as sob o seu tecto, deu-lhes guarida, comida e um pequeno quarto no fundo do quintal, paredes meias com o forno.

Tudo isso acontecera há quase vinte anos.

Lara crescera – uma criança igual a todas as outras, traquinas – num mundo pacífico, amigável, rodeada de amigos e vizinhos, sem mais preocupações que ajudar a mãe nas lides domésticas e na entrega dos pães, todas as manhãs.

A felicidade era assim feita de coisas simples… e pequenas.

Naquela madrugada, bem antes do nascer do sol, levantou-se em silêncio. Já deixara a trouxa preparada junto à porta, um punhado de roupas e alguns alimentos para a viagem, coisa pouca. Pé ante pé, fechou a porta do quarto, pegou nos pertences e saiu para a escuridão do exterior. Estava decidida.

A viagem demoraria três, quatro dias no máximo.

Com um pequeno cordel, atou a saia um pouco mais acima, para evitar os arbustos e as pedras do caminho.

E fez-se à jornada, sem olhar para trás.

Se tivesse olhado, talvez reparasse no olhar furtivo que a seguia, escondida numa das janelas da casa.

Gioncela, a mãe, há muito sabia que nada demoveria a filha daquela viagem.

Um sorriso triste assaltou-lhe o rosto.

O passado repetia-se – pensou. E nada podia fazer para o evitar.

Lembrava-se sim…. Muitos anos atrás…. De ela mesma abandonar a casa paterna, fugir até à orla do mar. perdera-se de amores por um marinheiro, um moço alto de caracóis negros e olhar de falcão, que a enfeitiçara desde o primeiro momento.

Entregara-lhe o corpo, entregara-lhe a alma, entregara-lhe todos os sonhos, o futuro; tudo o que tinha…. E o que ainda desejava ter.

Nunca mais o viu, desde o dia em que o barco partiu, rumo a algum porto distante. O barco voltou, ele não.

Dele, para além da lembrança, restava simplesmente aquela semente que já sentia a mexer dentro de si. Lara.

Mas tudo isso era passado, histórias de outros tempos.

Gioncela voltou a deitar-se, sem conseguir mais conciliar o sono.

Quando Lara parasse para tomar a primeira refeição do seu farnel, talvez reparasse no pequeno objecto que a mãe lá colocara dentro, pela calada da noite. Um pequeno amuleto em forma de cruz, que um marinheiro alto, de caracóis negros e olhar de falcão lhe oferecera a ela, há muito, muito tempo atrás.

- Sê feliz, Lara… - balbuciou – sê feliz…

2 comentários:

  1. Há coisas na vida das que não é possível fugir... é como se estivesse escrito nas estrelas... ou neste caso, nas ondas.

    Belo Texto
    Jorge

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  2. Pois, imagino o teu armário..sim..esse, bem atrás de ti, parece de porcelana, pintado com as cores do encantamento..., nem vou abrir para não perder a magia...vou antes esperar dia após dia para me deliciar com as histórias maravilhosas que guardaste lá dentro e que nos prende ao ecrã...

    Beijokas

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