domingo, 23 de janeiro de 2011

O escurecer dos dias



- “ A beleza não está nas coisas… está nos olhos de quem a vê”

Ela encostou-se um pouco mais, pendendo a cabeça sobre o ombro dele.

- Acreditas mesmo nisso? Tu?

- Claro que acredito. Estás sempre a elogiar-me, a dizer que sou bonito… ora como eu sei que isso não é verdade… só podem ser os teus lindos olhos os responsáveis por essa… ilusão.

- Não, João, claro que não. Tu és mesmo bonito.

- Sim Maria… e tu és uma princesa de um conto de fadas… que felizmente se encantou por este plebeu…

Ela riu, divertida.

O seu João era assim; modesto e sedutor, galanteador por natureza.

- Gosto muito quando colocas esses brincos de argolas – e ele passava-lhe as mãos pelo rosto esguio, numa carícia ao de leve – ficas com aquele ar de cigana…

- Sei… dizes-me sempre isso. Ainda te lembras quando os comprámos? Naquela feira de rua?

- Claro que me lembro. Aliás, lembro-me que foi nesse dia que dei um valente tropeção e fiquei estendido no meio da rua.

- É verdade… o susto que eu apanhei… - e a voz tremeu-lhe, as memórias a aflorar à superfície.

- Ora, ora, não foi nada… acontece a toda a gente – lá foi ele dizendo, em tom alegre.

Ela ia responder-lhe que não era bem assim, mas preferiu mudar de assunto.

- Sabes… - começou ela, hesitante – tenho estado a pensar… acerca da nossa viagem…

- Da viagem? Muito bem, muito bem… podes contar… alguma nova ideia que te surgiu?

- Ideia? Não, não é bem uma nova ideia, tenho estado a pensar em alguns pormenores, só isso…

- Óptimo, óptimo… sempre ouvi dizer que duas cabeças pensam melhor do que uma… e a que conclusões chegaste, pode-se saber?

- Pois… a festa… pensei… porque não fazê-la depois? Depois de regressarmos? Estaríamos todos mais descontraídos, tu mesmo te sentirias melhor, os nossos amigos gostariam de…

- Oh, Maria – e ele colocou-lhe um dedo nos lábios, num pedido de silêncio – claro que não, essa agora… a ideia inicial da festa não tinha nada a ver com esta viagem, a viagem surgiu depois… trata-se do nosso aniversário de casamento… são dez anos… claro que vamos fazer a festa…

Ela procurou novos argumentos para contornar a situação.

- Eu sei, amor, eu sei… mas repara… o nosso aniversário é no dia 15… e a viagem, o avião parte no dia 17… é tudo tão em cima da hora… podíamos adiar…

Ele interrompeu-a de novo.

- Maria, minha pequenina… estás preocupada…

Ela calou-se.

Claro que estava preocupada; e muito.

Afinal de contas, aquela não era uma viagem qualquer.

Partida para Cuba… dia 17. Primeira consulta… dia 18… e a operação… dia 19. O regresso… talvez uma semana depois, dependendo da convalescença, dissera o médico.

João continuava a olhar para ela, talvez à espera de uma resposta, as mãos entrelaçadas nas dela.

Ela sabia – o médico também já a avisara – que mesmo aquela tão curta distância… ele mal a conseguia ver, provavelmente talvez só um borrão colorido de contornos desfocados e escuros.

Sim… ela sabia-o… tal como ele.

A doença, certamente genética, manifestara-se dois anos antes, e evoluíra assustadoramente. Ao inicio, não passara de um leve ardor, alguns contornos esbatidos, facilmente confundível com cansaço.

Pouco depois, a mistura das cores, o aparecimento de borrões, o escurecimento dos cantos.

Os médicos foram peremptórios; Doença degenerativa da retina, incurável e aguda.

Foi um desabar do mundo.

Deixou de conduzir o automóvel, de trabalhar no computador, de ver televisão, de ir ao cinema. Só não deixou de sorrir e de manifestar sempre uma férrea vontade de ultrapassar a dificuldade.

- Maria… meu amor… então eu é que tenho o problema e tu é que choras? – questionava amiúde, sempre que lhe pressentia a voz trémula. – Claro que ainda vamos descobrir um jeito… só ainda não encontrámos o médico certo, vais ver…

Quando o nome do Dr. Morellos surgiu em cima da mesa, nem hesitaram. Já sabiam por muitas conversas que muitas pessoas se dirigiam a Cuba, pelos mais variados motivos e doenças, principalmente do foro oftalmológico. E o Dr. Morellos era o tal… que experimentara uma operação revolucionária num doente com a mesma doença que ele, João… e com aparente sucesso. Portanto… não havia tempo a perder, antes que a mesma se agravasse mais e mais.

Maria não partilhava o optimismo do marido. Sabia algo… que não partilhava com ele. A esperança e a convicção eram necessárias, fundamentais até, para qualquer sucesso. Uma espécie de fé, como ela costumava dizer.

- Muito bem, amor… faremos a festa de aniversário… e depois, quando voltarmos… faremos outra festa, ainda maior. E dessa vez, poderás ver todos os convidados, todos os nossos amigos, porque lá irão estar todos, ansiosos por te ver…

Ele sorriu-lhe, deliciado.

- Será um acontecimento… especial, sem dúvida. Espero não os desapontar, se eles vão lá para me ver já curado e dão de caras com este meu aspecto de hoje…. Sentir-se-ão defraudados, não achas?

E riu do seu próprio humor, afastando todos os maus presságios.

Continuaram encostados um ao outro, no banco de madeira à beira do lago.

Entardecia.

Maria sentiu de novo aquele nó a subir, do coração à garganta, impedindo-a de falar.

Não… nunca lhe diria.

Partiriam para Cuba na data prevista, fariam tudo conforme o estabelecido, as consultas, a operação, talvez até umas mini-férias depois disso.

Voltariam… e ele estaria vendo um pouco melhor. Não muito, mas um pouco melhor.

Depois… depois seria pior.

O médico também já a avisara. O tratamento experimental do outro paciente não fora o aparente sucesso que a comunicação social tanto apregoara. Resultara durante uns meses… e tudo regressara ao normal, ao lento escurecer dos dias.

Mas isso… João, o seu João, não precisava de saber.

Por um instante, desejou que aquela palavra “ Fé” significasse algo mais do que um mero desejo.

- Gostava de acreditar… - murmurou entre dentes

- O que disseste, querida? Não ouvi.

Ela acariciou-lhe os cabelos em desalinho.

- Nada, João… não disse nada...

8 comentários:

  1. A vida pode ser mesmo muito dura e só nos apercebemos disso quando passamos a dar importância à nesga de luz que nos resta.

    Porque tem de ser assim? Porquê?

    Mudo o final que a Maria pensa conhecer. Quero que se engane, ela e a ciência.
    Que o João veja as águas cristalinas de Cuba. O verde imenso das palmeiras, o dourado do entardecer, as imperfeições e as argolas já gastas nas orelhas da Maria. E que os dois possam continuar a partilhar pela vida fora as cores da vida que os rodeia.
    Bj
    Dida

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  2. Rolando,


    Nas entrelinhas do teu texto eu vejo a beleza do teu coração. A tua Maria é a carne viva do teu amor generoso e solidário. Um amor possível, embora distante da realidade, nesses tempos de amores descartáveis.

    Um amor singular, diria, jóia rara em tempos de: "...mas, que seja eterno enquanto dure." Parabéns!

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  3. Rolando

    Que triste, mas mesmo assim teus textos são sempre tão bons de ler...

    abraços
    Anne

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  4. Rolando,

    Que bom que existe a esperança.
    Enquanto tivermos esperança, tudo é possível.
    Lindo teu texto, amigo!
    Mais uma vez, não canso de dizer, Parabéns!

    Um abraço da Gislene.

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  5. Dida...

    Sei que não consegues ver daí o meu sorriso mas acredita ( acredita mesmo ) que adorei o final da história e que sim, o João e a Maria ainda viverão muitos dias felizes a ver o mar azul e a sombra dos coqueiros.

    Nem que a história tenha que ser re-escrita toda de novo.

    Beijos.

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  6. Julieta, amiga

    É verdade que nem sempre as palavras me saem alegres, nem sempre as histórias terminam num final feliz.

    Mas as histórias são só uma viagem, não é? O final feliz que desejo não é para as histórias... é para as pessoas que lêem as histórias.

    Beijos, amiga. Tudo de bom para ti.

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  7. Olá, Anne.

    É bom contar com a tua presença, aqui junto à fogueira. Só desejo que te sintas bem, senta-te ao pé da fogueira, apanha uma chávena de café... e deixa-te estar.

    Uma óptima semana para ti.

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  8. Gislene,

    Essa é a palavra mágica, não é? Esperança.
    Ou Fé, ou Convicção... ou Força... ou Magia, ou o que seja.

    Mas que existe e que parte cá de dentro... sim.

    Beijos.

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