sábado, 8 de janeiro de 2011

O adeus às armas




- Chegou a hora?

- Chegou sim… chegou a hora…

- Sabes que não precisas… podes sempre… podes sempre ficar…

- Eu sei… a sério que sei… e obrigado por insistir…

- Faço com gosto, sabes que nesta casa tens uma família, uma família enorme…

- Sei sim… e já sinto saudades de todos eles, antes de partir…

- Já te despediste de todos?

- Já… estive com eles no refeitório… à excepção do Pedro, disseram-me que tinha ido visitar o pai…

- É verdade, sim… o nosso Pedro tem o pai doente… espero que não seja nada de grave…

- Fizeram-me a festa… o Rodrigo até me ofereceu aqui um presente de despedida, com a exigência de só o abrir lá fora…

- Moço esperto, o Rodrigo… eu teria feito o mesmo. E sabes… tu sempre foste um exemplo… para todos eles…

- Não diga isso, professor, que exagero.

- Não é exagero nenhum, é a pura verdade. Todos eles te têm a maior consideração…

- Ora, ora… já se esqueceu que eu era o mais reguila? Aquele que sempre destabilizava a turma inteira?

- Claro que me lembro… mas mesmo assim. Tu tinhas as ideias… e eles seguiam-te. Sempre foste um líder nato.

- Mesmo discordando de si? Nas nossas zangas habituais?

- Claro que sim… e zangas? Quais zangas? Nós nunca nos zangámos, limitámo-nos só a falar mais alto um com o outro, nada mais…

- Pois… é verdade, sim… não me recordo de algum dia me ter zangado consigo, professor…

- Nem havia motivo para isso… lembras-te quando eu te expliquei os dogmas? Ficaste uma fera…

- Claro que me lembro… aliás, ainda hoje fico uma fera, quando penso neles…

- Não ficas nada… isso é só um disfarce…

- Não é não… fico mesmo uma fera. Creio que nunca me predispus a seguir algo que não conseguisse compreender na totalidade.

- Sim, lembro-me de me teres argumentado algo do género… mas sabes… mesmo que não concordes com eles… a verdade é única, apoia-se em leis, doutrinas… e nem todas nos são acessíveis… lembras-te de conversarmos sobre isto?

- Lembro… como me lembro… não foi numa dessas aulas que me chamou herege?

- Ora, foi a brincar… eu estava exaltado, tu estavas sistematicamente a pôr em causa tudo o que eu te dizia…

- E o resto da turma na paródia…

- Sim, essa foi a gota de água… como naquele dia em que se falou do casamento, lembras-te? Da primeira vez em que falámos desse assunto…

Fez-se silêncio.

- Não queres mesmo mudar de ideias, Rafael? Tu serias um excelente pastor de almas, tens um condão para explicares em palavras simples aquilo que por vezes nem os doutos conseguem… com os livros na mão.

- Não posso, professor… sabe que depois, um dia qualquer, teria que sair…

- Ainda as mulheres, Rafael? O eterno problema das mulheres?

- Também, professor… mas não só. Sabe bem que nunca foi só isso… talvez isso tenha sido a face visível de tudo o resto, nem sei…

- É uma opção de vida, Rafael, simplesmente uma opção. Não casar, dedicar a vida a uma causa maior, a objectivos maiores, à maior família de todas…

- Eu sei… mas não é a minha… e é verdade o que diz, eu seria um excelente pastor… mas não vou abdicar de uma família, naquele sentido mais pequeno, sabe? Mulher, filhos, cachorro, periquitos…

Novamente silêncio.

A porta do seminário continuava entreaberta, separando de forma invisível dois mundos.

- Vais casar, Rafael? Estás apaixonado, é isso?

- Não… que eu saiba não…

- Então? Ainda podes voltar atrás… e ficar…. Terias tempo para amadurecer esses pensamentos e como tu próprio reconheces, se nem estás com problemas de coração, se a carne nem te tenta, se nem apaixonado estás… porque não ficas?

Um último silêncio e o pegar dos dois pesados sacos de roupa.

- Por algo tão ínfimo, professor… que nem lhe sei explicar isto de outro jeito… porque quer o faça ou não faça… quer sinta essa tentação ou não…quero ter a liberdade de o poder fazer…

4 comentários:

  1. Olá Rolando,

    gostei (mais uma vez!) muito do teu texto! Pode ser que me engane, mas revejo-te em certas passagens do mesmo... será este uma introspeccao á alma? Ou um simples desabafo? Mas lá está, como nem sempre o que parece é... pode ser que tenha sido só impressao minha ;)

    Desejo-te um Domingo Feliz!
    Beijinhos

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  2. Oi, Sara...

    Não, não é um simples desabafo, nisso tens toda a razão. É uma introspecção, uma tomada de posição, sei lá... ou melhor, sei sim... as histórias que aqui deixo não precisam de ser bonitas, inóquas e correctas... precisam de aquecer a fogueira na praia, contando verdades, ou pelo menos aquilo que eu acredito ser verdade...

    Beijos, Sara

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  3. Entao nao deixemos a fogueira apagar!! Seja Inverno, Primavera, Outono ou Verao será e é sempre agradável estarmos TODOS juntos sentados á volta da mesma, para nos aquecermos, vivermos um bom momento e delicarmo-nos com o café e os bolos... Já pus mais umas achazitas para que a chama se mantenha acesa... e Tu já preparaste o café? Beijinhos

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  4. Rolando

    Passei por aqui, a partir do teu comentário no blog da Solange, li, gostei e voltarei :-) Escrever, as palavras são nossa maneira de fazer viagens ao interior e adquirir uma compreensão melhor de nós mesmos, nénão?

    abraço
    Anne

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