terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tu és a noite, eu sou o dia


- Não… definitivamente não me apetece…

E com este pensamento peremptório, o sol decidiu não se erguer no firmamento.

Puxou os lençóis um pouco mais para cima e contemplou a Via Láctea, família anónima da qual conhecia poucos primos. Todos eles residiam bem longe, orbitando outras estrelas, alheios à sua própria existência.

A grande nuvem de Magalhães, grupo de estrelas para onde se dirigia, permanecia estática no negrume da noite.

Pensamento curioso aquele, o de ele próprio ser Sol, fonte de vida e de luz, imerso na escuridão da noite, contemplando a Via Láctea… a sua família.

Uma estrela cadente rasgou os céus, polvilhando o vazio de pirilampos mágicos.

Sim, sem dúvida… a noite tinha uma magia especial.

Ajeitou-se melhor e deixou que os pensamentos flutuassem.

- Não te levantas? Eu já estou de partida…

O Sol lançou-lhe um olhar preguiçoso. A Lua arrumava as suas coisas – como conseguia ela guardar tantas e tão pequenas coisas dentro daquela maleta era um mistério insondável – e aprestava-se ao descanso.

- Não… não me apetece… creio que vou ficar aqui mesmo…o universo nem há-de sentir a minha falta, tenho a certeza…

- Mas o que te deu? É claro que vão sentir a tua falta… e despacha-te, é quase hora de amanhecer…

O Sol optou por fechar os olhos, numa fingida sonolência.

A Lua acercou-se um pouco mais, pousou a maleta de cosméticos e beijou-o suavemente na testa.

- Sol…

Ele manteve-se de olhos fechados.

- Sol… estou vendo lá ao fundo… bem longe… um campo de flores… girassóis, creio… estou todos impacientes, à tua espera…

O Sol, qual menino mal comportado, ainda tentou ripostar, a preguiça sem argumentos.

- Mas Lua… é sempre a mesma coisa, todos os dias… levantar, iluminar, deitar…. Levantar, iluminar, deitar… tu não te cansas? Eu estou tão cansado… é tão monótono…

A Lua piscou os olhos, naquele jeito meigo que só ela conseguia fazer.

- Oh… meu pequenino… claro que não é monótono… bem pelo contrário, é lindo…todos os dias e todas as noites acontece algo de único…. De irrepetível…

- Isso dizes tu… tu és a Lua… e julgas que eu não sei? Todas essas coisas bonitas, românticas… só acontecem á noite… eu nunca presencio nada de especial nem único…

A Lua apontou para um ponto no espaço bem distante.

- Olha… ali mesmo… lá ao fundo… consegues ver? – e apontava para uma queda de água, emoldurada entre montanhas.

O Sol espreitou… e ao espreitar consentiu que um tímido raio embatesse nas águas… formando de imediato um arco-iris.

- Vês? – e a Lua sorria, embevecida com o seu próprio estratagema – ora então diz-me lá, ó Sol… quem mais no universo senão tu… consegue criar um arco-iris?

O Sol sorriu, a alma infantil pejada de orgulho.

E sem querer, mais raios se soltaram do seu corpo, num amanhecer radioso e colorido.

A Lua passou-lhe a mão pelos cabelos em desalinho, puxou-lhe a coberta.

- Vá… levanta-te… que já estás atrasado… e eu também. Vemo-nos logo à noite?

Ele acenou que sim.

- Sim… por favor… vem cedo…

Ela viria, sim.

Naquela noite, como lua cheia. Bela e esplendorosa, rainha da noite.

- Virei sim… e agora, meu criador de arco-iris...vai…. Brilha… és único… vai fazer aquilo que só tu sabes fazer…. dar vida…

10 comentários:

  1. Amigo Rolando,

    Vida longa para essa mente fértil e imaginativa que a cada dia nos brinda com textos tão primorosos.

    Com eles nós também viajamos... E o bom dessa viagem é a possibilidade de saber discernir entre o real e a fantasia...

    Entre o escritor e o leitor atento há uma cumplicidade que dispensa as entrelinhas. Tudo é compreendido! Questão de sensibilidade!

    Você é tão bom nisso! Parabéns!

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  2. Que lindo Rolando!

    Somente você para criar uma história tão encantadora.
    Parabéns pelo seu talento.

    E fiquei aqui pensando... No Irmão Sol e na Irmã Lua.

    Que benção, que esplendor, é tudo isto que nos cerca.


    Um abraço,
    da amiga,

    Gislene.

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  3. Maravilhoso texto! Carregado de doçura e ternura, quando eu crescer quero ser como a Lua para mimar o Sol :-) bjs

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  4. A fantasia por aqui ganhou vida, tem beleza e cor sem fim.
    Boa noite

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  5. Ah amigo
    Agora percebo porque teima em se manter este tempo cinzento!
    Se puderes dá aí mais uma forcinha ao Sol, diz-lhe que precisamos do seu calor e da energia que nos deixa quando brilha.
    Ele que não pense em nos deixar, está bem?
    Beijos
    Manu

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  6. Rolando meu amigo
    Tudo tão simples não é ?
    A Vida é assim simplezinha ora o Sol , ora a Lua e todo o firmamento a nos gratificar sem cobrança alguma !!
    Lindo texto
    abraço carinhoso
    Lilian

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  7. Se prestarmos atenção aos pequenos pormenores nada é monotono.
    Gostei muito do texto.

    Beijinhos

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  8. Sol e Lua, dia e noite, Homem e Mulher... e porque tudo se complementa e completa...

    Obrigado, amigos.

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  9. Olá Rolando, havia lido esta história que me soou a uma bela lenda e por "portas e travessas" ainda não a tinha comentado, aqui volto para dizer que gostei muito, aliás qualquer conto ou narrativa que tenha o divino toque de mito ou lenda, te digo que sou confesso fã :))

    Desejando um óptimo fim de semana, abraço amigo ^_^

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