segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O poço sagrado



- Pronto… está confirmado. Agora… quem vai dar a noticia?

Trocaram um olhar aflito.

- Bem… você é o mais velho, mais responsável. Talvez…

- Eu? Você está louco? Eu só recebi a mensagem, não tenho nada a ver com o assunto. Nem é o meu departamento…

- Meu também não…

- Nem meu…

Os três lançaram um olhar para o colega, ainda segurando um pequeno pedaço de papel na mão.

- Eu? – gaguejou o visado – não estão a olhar para mim, pois não?

- Claro que estamos – e o mais velho espetou-lhe o dedo no peito – foi você que fez os testes… você é que descobriu que estava seco… portanto, é você que irá dar a notícia que o poço secou…

O pequeno neurónio estremeceu, a cauda brilhante subitamente pálida. Dar a notícia? Ao mestre? Ao criador? Era mais fácil alguém pedir que se atirasse do alto de uma torre.

- Escutem… vá lá, sejam razoáveis… eu ainda sou muito novo… porque não você? Não é o seu departamento que trata destas coisas dos sonhos, desejos e tudo o mais?

O outro neurónio – o que aparentava ser o mais velho – abanava a cabeça.

- Nem sonhe… você é o responsável do poço… e mais ninguém. Portanto, se quer um conselho… despache-se, antes que seja tarde… quanto mais tarde receber a notícia, mais irritado o mestre ficará…

O pequeno neurónio mudou de cor três vezes. Mal se apercebeu dos empurrões, escada abaixo, os olhares de compaixão dos colegas, até um adeus disfarçado de alguém que lhe abria a derradeira porta. Provavelmente, não voltaria a ser visto – era essa a sensação que lhe transpirava dos poros.

- Mestre…

No centro da grande sala, o mestre fitava-o – rosto impenetrável, expressão fechada.

- Diga, neurónio nº 375. Qual o seu departamento? Apresente relatório.

O pequeno neurónio engoliu em seco.

- Mestre… departamento da imaginação… responsável pelo poço… venho entregar os resultados dos últimos testes…

- Ah, muito bem, muito bem… o nosso amo já me tinha perguntado por eles, estão sempre a fazer falta… você não sabe que ele está a meio de uma obra, muito… mas mesmo muito importante? E então… os resultados?

O neurónio 375 baixou os olhos, esticou a mão e pousou o relatório sobre a mesa.

- Bem… sabe… os resultados …. Não são … isto é… o poço talvez não…

O mestre, capataz absoluto de todas as tarefas do primeiro piso do cérebro, não tinha tempo a perder, muito menos paciência para aquele gaguejar trémulo.

- Neurónio nº 375… - gritou, as paredes estremecendo – os resultados?

- O poço, senhor… o poço secou…

O mestre ergueu-se, sentou-se de novo, ergueu-se novamente. Os olhos chispavam pânico, adornado de uma fúria impotente.

- O poço… o sagrado poço da imaginação… secou?

O neurónio nº 375 acenou que sim. Desejava ardentemente que o chão se abrisse e o devorasse.

Não foi necessário esperar muito para que o seu desejo se concretizasse.

- Pode retirar-se, neurónio nº 375. Será em breve desactivado, a sua colaboração já não é mais necessária…

O pobre mensageiro arrastou-se para o exterior da grande câmara, deixando o mestre, capataz do cérebro, entregue às suas próprias cogitações.

E agora?

Como dizer – e de que forma – ao consciente… que o sagrado poço da imaginação secara?

Como fora possível tal acontecer?

Sabia que o seu amo se encontrava a meio de uma tarefa importante, muito importante… a escrita de um livro.

E agora?

Lentamente, dirigiu-se à porta que dava acesso ao segundo piso do cérebro, onde se distribuíam os vários departamentos ligados à consciência.

Como dar a notícia?

“ O sagrado poço da imaginação secou… “

Aproveitou os passos ao longo do comprido corredor para ensaiar a melhor entoação.

Suspeitava que o supervisor da consciência iria ficar irritado, mesmo bastante irritado. E que – em sentido literal – rolariam algumas cabeças, por tão nefasta noticia.

Passou a mão pelo pescoço, antevendo o pior, enquanto ia repetindo maquinalmente:

“ Venho informá-lo que, pelas últimas análises efectuadas, somos obrigados a concluir que o poço… “


2 comentários:

  1. Tanta coisa a secar, ROLANDO...

    A IMAGINAÇÃO a si, felizmente, continua a brotar.

    Um abraço.

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  2. Podemos fazer contra-análise?
    Dizem que errar é humano.
    Com toda a certeza é alarme infundado.
    E...
    Se o 375 secou, os outros trabalharão em dobro para compensar a perda.

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