terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Luisa, a Restauradora



- Minha senhora… o seu chá…

Dona Luísa olhou para ela, distante e pensativa.

- Obrigado, Carmen, pode deixá-lo aí mesmo…

A velha ama pousou o tabuleiro sobre a mesa, ajeitou a chávena, o bule de porcelana, o mel, a geleia de amora. Disfarçadamente, tapou o pequeno pedaço de papel com a taça do mel, deixando à vista simplesmente uma das pontas. Em seguida, acercou-se vagarosamente da duquesa, o naperon de bordados pendurado do braço.

- Ainda estais preocupada… e indecisa?

Dona Luísa de Gusmão acenou com a cabeça, os lábios contraídos num nervoso mal disfarçado.

- Estou sim, Cármen, estou… muito indecisa… e meu esposo, o duque… conta com a minha opinião…

- Vosso esposo, o duque D. João é uma pessoa sábia… e preza muito vosso conselho, senhora.

Dona Luísa concordou.

- É verdade, minha ama, o que dizeis… o que mais me aflige ainda, pela responsabilidade do que me é pedido… um conselho, uma opinião… que o coloca em perigo, a ele e a todo o reino…

A velha ama sorriu, enigmática. Cármen Velasco y Giron - ama de leite da duquesa – era uma daquelas mulheres de presença austera e sisuda, firme de postura e inabalável de convicções. Acompanhara dona Luísa aquando do seu casamento com o fidalgo D. João de Bragança, permanecera ao seu lado nas boas e nas más horas; como ama de leite, conhecia-lhe os pensamentos, ajudara-a nas primeiras letras, embalara-a com canções e afagos.

Dona Luísa Francisca de Gusmão, herdeira da poderosa casa de Lacerda – os senhores da Andaluzia espanhola - era uma jovem formosa e de temperamento quente, resoluta nas acções.

Quando o pai, João Peres de Gusmão, lhe comunicou o contrato de casamento com o fidalgo português, fez algo de impensável: disse Não.

- Não vos precipiteis, senhora… - aconselhara na altura a velha ama - … e vede primeiro com os vossos olhos tal fidalgo. Sede paciente…

Dona Luísa de Gusmão esperara.

Quando lhe foi dada a oportunidade de conhecer o fidalgo português… algo sucedeu. O encontro decorreu em Elvas, onde viriam a casar pouco tempo depois; e o que seria um mero casamento de conveniência, pensado pela duquesa de Mântua, vice-rei de Portugal, transformou-se num casamento de amor. Dom João era um jovem romântico, galanteador por natureza, um pouco indeciso de acções. Dona Luísa, decidida, complementava-lhe o carácter, aplacava-lhe as fúrias, encorajava-lhe as decisões.

Naquele momento… sabia que o esposo, mais que nunca, contava com o seu apoio, necessitava dele. Na noite anterior, o paço ducal de Vila Viçosa engalanara-se para receber o distinto Dom Miguel de Almeida, da casa de Abrantes. E em pleno jantar, quando o velho fidalgo ergueu o copo e brindou, exclamando “ Ao futuro rei de Portugal “… Dona Luísa sentiu o olhar do esposo, a dúvida estampada no rosto, pedindo-lhe sábio conselho. Sorrira-lhe simplesmente, naquele jeito já íntimo de dizer que mais tarde conversariam sobre o assunto.

E assim seria.

- Minha senhora… beba o seu chá… que arrefece… eu vou às cozinhas, ver se está tudo em ordem…

A velha ama não esperou pela resposta e saiu de mansinho, deixando Dona Luísa entregue aos seus pensamentos.

- Sim, minha ama, ide…ide…

Encheu a chávena de chá e serviu-se do mel..

Foi então que reparou no pequeno papel cuidadosamente dobrado, assomando sob a taça de porcelana.

Desdobrou-o e a caligrafia apurada da velha ama encheu-lhe de repente o espírito. Uma simples frase, naquele jeito tão peculiar que ela sempre utilizara, conseguindo com palavras simples explicar factos e pensamentos nem sempre tão simples.

Dizia simplesmente:

“ Antes rainha por um dia… que duquesa toda a vida.”

Dona Luísa de Gusmão sorriu.

Corria o dia 30 de Novembro do ano da graça de 1640.

Bebeu em gole de chá e ergueu-se, subitamente desperta para uma tarefa urgente.

O esposo, Dom João, esperava o seu sábio conselho.

E ela já sabia o que lhe dizer.

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Nota: Tenho por Dona Luísa de Gusmão, espanhola por nascimento e rainha de Portugal por devoção, uma especial simpatia, bem para além do facto do seu casamento se ter realizado em Elvas… e de se ter tornado, como rainha, a senhora das terras de Óbidos, Caldas da rainha e Salir do Porto, entre outras.

2 comentários:

  1. Célebre a frase...e muito bem engendrada a história.

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  2. Gosto muito destas "estórias" da História.
    Também D.Luísa recebeu Óbidos como prenda de casamento, ainda decorria o tempo em que todos os reis a ofereciam às suas esposas.
    Até 1832 Óbidos foi "Casa de Rainhas" e D. João IV com a sua esposa deixaram nesta vila a sua marca, mandando construir a cadeia, hoje Museu Municipal.
    Tu tens razões de sobra para simpatizares com ela, para mim não foi das rainhas que mais me marcou, mas lendo o teu texto, fico com uma ideia mais pormenorizada da sua personalidade, carácter e força.

    Beijos
    Manu

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