sábado, 26 de março de 2011

Terceiro acto - Uma história invulgar


Terceiro acto

A enorme sala do nobre teatro engalanara-se a rigor; os lustres polidos, o estuque retocado, a tapeçaria do corredor central substituída. Uma vez por ano, a academia literária reunia-se de forma extraordinária para atribuir os prémios aos seus notáveis pares, nas várias categorias de drama, ensaio, novela, poesia, revelação. Uma cerimónia já com mais de meio século de existência e que, pela primeira vez na sua história, iria englobar até uma nova distinção, mercê da intercepção de um mecenas das artes, um empresário milionário ligado ao mundo do jogo e dos casinos – o prémio Lusofonia.

À hora marcada, as luzes apagaram-se e à boa maneira americana, o apresentador de serviço saltou para o palco, ao mesmo tempo que se iniciava a projecção de uma pequena peça documental, retratando momentos significativos da academia, rostos ilustres já premiados, capas de obras notáveis, imagens de tertúlias, livrarias, alfarrabistas, gente anónima a ler nos parques, nas praias, nos autocarros…

O apresentador aproveitava as deixas programadas e lá ia introduzindo “ e este ano, graças ao empenho pessoal da fundação Andrade, na pessoa do seu presidente… “

Margarida lançou um olhar distraído em redor.

Sempre tivera uma estima especial por aquele teatro, um daqueles locais que exalava uma atmosfera única, contagiante. Ali assistira a muitos ciclos de cinema, num tempo em que o espaço – antes de servir para as galas da moda – era utilizado por companhias de teatro amadoras, pequenos eventos culturais e projecções de cinema independente.

“ Betty Blue”, “ Vivement dimanche “, “ La grande bouffe “, “ Ran “… e “ Les uns et les autres”, de tão grata memória.

As memórias são, por vezes, estranhas companheiras.

Esboçou um leve sorriso, ao recordar aquele último título, um filme enorme, com uma banda sonora fantástica, com as últimas cenas e… uma coreografia do bolero de Ravel como nunca havia visto até então.

Repetira o filme… duas vezes, acompanhada.

Memórias.

O apresentador passara a palavra a um conhecido novelista, autor de várias obras já passadas ao pequeno ecran. “ E na categoria de novela, a academia distinguiu este ano…”

Não era o tipo de obras que mais a seduzia. Em boa verdade… esperava ansiosamente o tal prémio especial, que distinguiria de uma forma inovadora, um trabalho conjunto de dois autores… e sabia-se dos bastidores que essa colaboração envolvia a ilustração de uma obra… e que ambos os autores eram desconhecidos do grande público.

“ E agora, na categoria de ensaio, a academia decidiu atribuir…”

Estranhas, as voltas do mundo – pensou. Tantas e tantas vezes ali se sentara, nas desconfortáveis cadeiras de tecido vermelho… e agora, volvidos os anos, ali se encontrava de novo.

Uma ovação fê-la regressar à realidade.

O milionário filantropo subira ao palco e após agradecer discretamente os aplausos, iniciara uma longa dissertação sobre as virtudes do mecenato, o apoio às artes, o seu gosto pessoal pela literatura e pintura, conseguindo misturar e incluir no discurso a promessa de mais iniciativas como aquela, em prol da cultura.

“ É portanto com imenso prazer que a fundação Andrade, em estreita colaboração com o júri desta academia, vai entregar o primeiro prémio Lusofonia a dois jovens valores, um no campo da ilustração gráfica… e o outro na categoria de romance… pela colaboração original que deu origem a essa obra notável que nos surpreendeu a todos… os filhos de África. Minhas senhoras e meus senhores… Teresa Augusta de Melo “

Uma salva de palmas acompanhou a entrada da figura esguia, uma mulher de meia idade toda vestida de negro, nitidamente pouco habituada a pisar palcos. Vacilou um pouco, agradeceu com uma vénia tímida e recebeu das mãos do orador um estojo aveludado, acompanhado de um envelope.

Margarida não a conhecia.

Ouvira falar da obra – os filhos de África – aparentemente um romance sobre a vida aventureira de Diogo Cão, navegador com o nome ligado às terras de Angola. As ilustrações – dizia-se – reproduziam de modo soberbo todo o inóspito continente e as suas gentes, uma autêntica obra-prima.

“… e o co-autor deste notável trabalho… jovem promessa do nosso meio literário… “

Margarida espreitou curiosa. Seria alguém conhecido?

“ … José Duarte Almeida, que com esta sua primeira obra publicada, se destaca…”

Não… aparentemente também não lhe dizia nada; nem o nome, tampouco a figura, um jovem de barba rala e casaco de xadrez. Mas enfim… não podia ter a pretensão de conhecer toda a gente… apesar de ser muito boa a fixar rostos.

- Menina… o casaco…

Ela virou-se em sobressalto, não se apercebera da presença.

- Oh, desculpe… não reparei que estava aqui… se me dá licença…

Pegou no pequeno círculo de plástico numerado e lá foi procurar o respectivo casaco. Ah, ali estava ele, bem ao canto.

Entregou-o com um sorriso, preparando-se para a horda de apressados que muito em breve ali se acotovelariam ao balcão, recolhendo os casacos, chapéus, gabardinas e chapéus de chuva, principalmente chapéus de chuva.

À parte o pormenor de permanecer de pé longos períodos, gostava do trabalho. O bengaleiro do velho teatro era bastante espaçoso e amplo, com uma vista privilegiada sobre uma das entradas da sala, o que lhe permitia sem grande esforço assistir a tudo o que ali decorresse, sem praticamente precisar de abandonar o local de trabalho.

- … é aquele claro, ali ao fundo… - lá ia dizendo mais um recém-chegado, depositando-lhe a ficha plástica nas mãos – e também o chapéu de chuva que está mesmo ao lado…

Ela apanhou-o e repetiu o procedimento habitual; pendurar o círculo numerado no local, conferir o objecto a devolver, sorrir para o cliente, dizer boa noite.

- Tenha uma boa noite, senhor…

Meia hora depois, restavam apenas três ou quatro objectos por recolher.

- Agora já me sabia bem um pouco de descanso… - murmurou.

Abaixou-se para esfregar o joelho esquerdo, sempre mais maltratado. Aquela sensação de calor incomodativo nas pernas – talvez o prenúncio de varizes – era horrível.

- Por favor… aquela gabardina…

Quase de cócoras e de costas voltadas para o balcão, estremeceu.

Há vozes… que nunca mais se esquecem.

E mesmo sem adivinhar o quanto poderia o tempo ter alterado aquele rosto, sabia perfeitamente que o reconheceria, em qualquer recanto do mundo onde o visse.

Virou-se lentamente.

- Teodoro…

Ele, farda de motorista de limusina e chapéu na mão, encostado ao balcão… abriu os olhos de espanto.

- Margarida…

Pois bem… perguntam vocês…. Então e depois?

Pois… não existe um depois para ser contado, não existe um final feliz ou infeliz… existe simplesmente um reencontro, um reencontro improvável num palco que porventura ambos quereriam pisar… mas que o destino e as contingências da vida ditaram de modo bem diferente.

Teodoro não seguiu a carreira de escritor, Margarida não se transformou numa pintora famosa. Seguiram os seus destinos e estranhamente… voltaram a encontrar-se.

O futuro destas nossas personagens… seria o quarto acto.

Que não será escrito aqui.

Nem eu sei se após aquele assombro… sorrirão um para o outro, se os olhos brilharão um pouco mais, se o coração baterá mais depressa.

Chega uma altura em que o destino – nem que seja na forma de escrever uma história – se rende ao supremo dom da criação.

As nossas personagens… Margarida e Teodoro… são senhoras do seu próprio destino.

E como tal, senhora e senhores, meninas e meninos… vamos…. Deixemo-los a sós agora por uns momentos… certamente terão muitas coisas para dizer um ao outro, não vos parece?

Vá… vamos … deixemo-los a sós…

4 comentários:

  1. Ohhh!.... Eles merecem estar a sós. Mas antes disso, nós mereciamos saber se tinham decidido ir beber um café.

    Beijinhos

    ResponderEliminar
  2. Apenas o momento importa, aquele momento, o olhar, o reencontro, afinal só temos isso como certo. O futuro...ah o futuro, vamo-lo construindo com pequenos nadas que fazem uma vida.

    Beijos
    Manu

    ResponderEliminar
  3. Um encontro merecido a sós... absolutamente!
    Prendeste-nos até ao último parágrafo!

    ResponderEliminar
  4. Rolando,

    Há momentos que valem por uma vida! E, disso eu entendo... Pena, que o quarto acto não será escrito por ti.

    Teodoro e Margarida, agora, terão em suas mãos o poder de decidir os seus destinos. Tomara que eles aproveitem a oportunidade porque, “às vezes, basta uma coisa muito, muito pequena para juntar duas pessoas”, mas vivemos tão presos à vaidade, ao orgulho e as convenções, que esquecemos que o tempo urge e que não temos a vida toda pra falar e viver o amor...

    E, como diz o escritor Leo Buscaglia: somos tão menos, um sem o outro.

    Aguardo novas histórias. Ficou um sabor de quero mais. Bjs

    ResponderEliminar