segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Gps do amor



- Desculpe… você tem a certeza?

Olhou para a embalagem, deu-lhe duas voltas com as mãos, leu e releu:

“ GPS do Amor”

A funcionária da loja, velha colega dos bancos de escola, observando-o incrédulo, tentou ajudar.

- Mas é verdade, doutor Paulo, é mesmo verdade. Ainda ontem apareceu aqui um casal que veio agradecer, só confirmar que tinha resultado…

O cliente lançou um olhar embaraçado à balconista.

- Margarida…. Por favor, que é isso? Deixe lá esse tratamento de doutor…. Caramba, fomos colegas de escola…

Ela mudou sucessivamente de cor, desde o branco do balcão da loja até ao roxo do embaraço completo – se tivesse ali um buraquinho no chão, mergulharia naquele instante. Mas o Paulo, o “doutor” Paulo… era uma memória atravessada na garganta, daquelas memórias que começam por um beijo distraído num baile de escola e só deixam marcas a uma das partes, neste caso, a ela.

- Claro, claro…. Paulo… obrigado…. Mas pode levar o GPS, a sério… eu mesma comprei um conjunto para mim, apesar de ainda não o ter utilizado….

Ele procurou as instruções na caixa.

- E como se utiliza este… estranho objecto?

Ela pegou numa embalagem já aberta por outro cliente.

- É fácil, é muito fácil, eu explico…. Na verdade, este GPS… é como um emissor e um receptor, sabe? Só que em cada conjunto que se vende, no mundo inteiro…. Não há nenhuma caixa que contenha o par certo, não sei se me percebe…

O cliente ia abrindo os olhos, agradado com o tom da conversa.

- Continue, continue… até agora estou acompanhando…

Ele levantou ao alto um dos GPS, para lhe mostrar melhor os botões e comandos.

- Está vendo aqui deste lado? Só tem um botão e uma fila de pequenas luzes verdes, creio que dez. E depois tem esta luz pequenina vermelha, aqui ao fundo…

- E tenho que prestar atenção a qual delas? – quis ele saber

- No seu caso…. Começa por prestar atenção à vermelha. Enquanto a luz vermelha permanecer acesa, significa que o par deste GPS ainda não foi activado, ou comprado. Quando desaparecer a luz vermelha, pode começar a carregar no botão verde. De cada vez que carregar…. Acender-se-ão algumas luzinhas verdes …. Estas aqui, está vendo?....

Ele lá foi acenando com a cabeça, dizendo que sim.

- Quanto maior o número de luzes acesas…. Mais próximo está o par deste GPS…. E do mesmo modo, se outra pessoa carregar no GPS certo que faz par com o seu …. Verá acender-se o mesmo número de luzinhas verdes…. Está entendendo agora?

Ele sorriu, a Margarida continuava a ser uma boa conversadora, era a imagem que agora recordava dela, discursando num papel de teatro em que ambos haviam participado, tantos anos atrás.

- Sim…. Claro, estou entendendo…. Mas Margarida, diga-me…. E quando as luzinhas verdes estiverem todas acesas…. O que significa esse “estar perto” ? É algo como a mesma cidade, o mesmo bairro? Como vou saber ao certo?

Foi a vez dela sorrir, como quem vai puxar de um trunfo decisivo.

-Ahh, boa pergunta, boa pergunta… e é verdade, já me esquecia de explicar…. Os GPS vêm com um sinalzinho sonoro…. Quando se encontrarem a poucos metros um do outro… começam os dois a tocar, e ambos a mesma musica… que nem me pergunte qual é, que também não sei…

- E a Margarida, dizia… também comprou um para si, foi? E já o experimentou?

Ela baixou ao de leve o olhar, apanhada de surpresa.

- Bem… não, ainda não…. Mas vou experimentá-lo, um dia destes….

Convencido, mais pela simpatia da vendedora ex-colega que pelas propriedades mágicas do “Gps do amor”, pagou e foi à sua vida.

A vida dava muitas voltas, verdade.

Ele, doutor Paulo, médico, consultório na cidade, solteiro e solitário, pouco dado a vida social, introvertido e amigo de caminhadas na montanha. Um ornitólogo muito amador, como gostava a si mesmo de se intitular. Mas no fundo, um mero solitário que sempre preferira fugir de todo e qualquer compromisso, fosse ele de que tipo fosse, a pretexto de uma liberdade que julgava resolver tudo…. Mas que agora, com meio século de vida, descobria não resolver rigorosamente nada.

Ela, Margarida “russa”, era “russa” de alcunha desde os tempos da escola, de cabeleira arruivada e sardas engraçadas no rosto. Despachada, desembaraçada, com jeito para o teatro e tudo o mais que implicasse falar em publico ou defender causas. Casara muito nova com um primo afastado, abriram juntos um bar e uma mercearia. Desencantou-se da vida quando o marido a trocou pela empregada da loja, com idade para ser sua filha. Abriu o seu próprio negócio, vendeu produtos de beleza de porta em porta até descobrir um casal que se conhecera precisamente graças ao “GPS do amor”. O resto…. Era passado recente.

O doutor Paulo chegou a casa e vá de espreitar com mais atenção o estranho objecto. Mal accionou o pequeno interruptor, um pequeno zumbido e a luzinha vermelha piscou de imediato; portanto, a Margarida tinha razão…. Só significava que o par daquele Gps ainda se encontrava desligado, algures num ponto qualquer do planeta.

Sorriu com vontade. Não acreditava nem um pouco em toda aquela publicidade e fama granjeada pelo estranho objecto…. Mas era difícil permanecer-lhe indiferente.

E mesmo que na verdade o Gps pudesse sintonizar um outro idêntico – sim, parecia-lhe perfeitamente razoável – mais difícil seria acreditar que o mesmo sucederia aos respectivos proprietários.

- Sim… - murmurou para si mesmo – reconheço que …. Seria um óptimo argumento…. Seria um excelente filme…

Largou-o sobre a mesa de cabeceira, trocou de sapatos e dirigiu-se ao quintal; um canteiro enorme de hortênsias, roseiras e dálias requeria a sua atenção urgente.

O mês de Maio escorreu num ápice.

O consultório do doutor Paulo – não sendo nada de extraordinário – tinha clientela certa, um misto de vegetarianos descontentes e obesos em busca do primeiro empurrão; sim, o doutor Paulo era um nutricionista, temperando com bom humor as receitas aos seus pacientes. Como ele dizia muitas vezes “ eu não quero que você morra à fome, senão já não volta para me pagar a consulta”.

No hall de entrada, duas enormes gaiolas cheias de pássaros coloridos davam um tom irreverente ao branco tradicional das paredes. Claro que também tinham a vantagem de distrair os pacientes da sala de espera mas, acima de tudo, eram uma companhia. Ao final do dia, depois de fechar a porta, puxava de uma cadeira e sentava-se ao lado, enchendo os comedouros, mudando a água, verificando os poleiros de madeira.

Por mais de uma vez pensara em fechar o consultório, para se dedicar à sua paixão pelos pássaros; amealhara o suficiente, em mais de vinte anos de profissão, para gozar tranquilamente de uma reforma antecipada. E no entanto… sabia que nunca o faria. O consultório era a sua janela para o mundo, o único local onde podia conversar serenamente com as pessoas, onde ouvia, quase em confissão, os pecados de todos os que o procuravam, na ânsia de perder um pouco de peso, um pouco de angústia, um pouco de tudo.

Quando, no último domingo de Maio, abriu os olhos e procurou maquinalmente o relógio, pousado sobre a mesa de cabeceira… reparou.

- Olha, olha… a luz vermelha… apagou-se…

Na realidade, o Gps, ainda no mesmo local onde o largara, acordara aparentemente do seu sono letárgico, espicaçado pelo facto de, algures num ponto desconhecido do mundo, o seu gémeo ter sido activado.

Onde seria esse lugar?

Mordido pela curiosidade, carregou no botão de pesquisa, como a funcionária da loja lhe explicara.

- Uma… duas…. Três…. Quatro. Quatro luzes verdes? Isto começa bem…

Mas o que significariam quatro luzes acesas, de um total de dez? Algo tão distante como a França? Ou África? O Brasil, talvez? Ainda pensou em voltar à loja, só para pedir uma interpretação. Mas corou de vergonha, só de se imaginar a entrar de novo na loja, perguntando “ Oh, Margarida, diga-me lá…. Estas quatro luzinhas significam quantos quilómetros? “.

Não… decididamente não, nem pensar. Seria ridículo.

Pegou no Gps e lançou-o para o bolso. Se por acaso a encontrasse na rua… perguntar-lhe-ia.

Margarida, a “ russa “ não se encontrava, naquele dia, na melhor das disposições. Claro que no mesmo dia não conseguir pôr o carro a trabalhar e já chegar atrasada à loja…. ter que ouvir duas reclamações de clientes ou ainda receber um telefonema do banco a solicitar a regularização da sua conta… não eram propriamente coisas que ajudassem a alegrar os dias.

Mas na verdade, faziam parte das contingências da vida. A vida de Margarida era – e ela sabia-o bem – uma montanha russa de acontecimentos súbitos, imprevisíveis mesmo. De tal modo que já se habituara a que no mesmo dia as notícias boas e más se sucedessem a um ritmo alucinante, fazendo das semanas autênticos carrosséis de emoções.

- Amanhã será outro dia… - repetia amiúde para si mesma - …. E vais ver que tudo se resolverá.

Fechou a loja e rumou ao centro comercial. Nada como um bom filme de aventuras, com muita acção, para rematar aquele dia de trabalho tão cinzento e pejado de incidentes.

Comprou o bilhete e foi instalar-se confortavelmente, bem antes do apagar das luzes.

Aos poucos e poucos, a sala foi enchendo, enchendo – principalmente gente miúda de balde de pipocas na mão – na mesma proporção em que se arrependia de não ter escolhido uma sessão mais tardia.

- Ai, ai…. Pipocas… isto vai ser bonito, vai…

As luzes apagaram-se…. E o pano subiu.

Meia dúzia de espectadores atrasados continuaram a entrar, procurando na penumbra as poucas cadeiras vazias.

E foi então, logo naquele preciso momento… que aconteceu.

- Oh, não… - exclamou aflita, levando a mão ao bolso.

Mas não era o telemóvel. Desesperada, procurou no outro bolso, por dentro, por fora… nada.

E foi então que um pequeno ecran iluminado lhe chamou a atenção, espreitando ao um canto da mala.

- O Gps…. Mas como… agora?

Ergueu-se, tentando alcançar com a mão o fundo da mala. Apanhou-o.

Por um segundo que lhe pareceu uma eternidade, o olhar deteve-se sobre aquela fileira de pequenas luzes verdes, todas acesas.

- Oito… nove… dez. Dez?

O coração disparou. Quando, poucos dias atrás, se lembrara de ligar o pequeno Gps, reparara que a luzinha vermelha desaparecera logo de seguida. Algures, perto ou longe…. Um outro Gps já estava activo… e procurando-se mutuamente.

Mas aquela semana de trabalho não fora propriamente a melhor e da única vez que experimentara carregar no botão de pesquisa, assustou-se – seis luzinhas verdes acenderam-se diante dos seus olhos.

Mal carregou no botão que permitia desligar o som do pequeno aparelho, o coração deu novo salto.

Ali mesmo… numa daquelas cadeiras, naquela mesma sala… a mesma musica soava, inconfundível, exactamente a mesma musiquinha que ela acabara de silenciar no seu Gps. E isso só podia significar uma coisa.

Muitas filas à frente, reparou num vulto a erguer-se, bem na direcção do som. E depois, logo depois… novamente o silêncio.

Tremendo de medo e excitação, desligou o Gps. Não se sentia preparada para encontrar fosse quem fosse, muito menos o proprietário… do outro Gps.

Junho.

Um verão antecipado deixara de ser a excepção e passara a ser a regra. O calor apertava, os dias de céu azul sem nuvens sucediam-se ininterruptos, as temperaturas excessivas a prender os transeuntes em casa ou nos corredores frescos das galerias comerciais.

Na opinião do doutor Paulo, cheio de razão, Junho já era mês de praia…. Não fosse o insignificante pormenor da praia mais próxima distar quase três horas de viagem.

Na ausência de vida social, churrascadas em casa dos amigos, pescarias, jogos de futebol aos domingos de manhã… existia sempre a salvaguarda de visitar exposições, museus, cinemas, teatros, até o circo. Ou, como seria naquela noite o caso…. A ópera.

Verdade seja dita, nunca assistira a tal espectáculo. Mas, naquele caso, justificava-se. A pequena cidadela contaria, a partir daquela noite, com uma majestosa sala de espectáculos, capaz de ombrear com os grandes espaços da capital. E para a inauguração de tal espaço, o presidente da câmara não poupara esforços, abrindo os cordões à bolsa. Para além de convidar a companhia nacional de bailado para interpretar o bailado de “ A bela adormecida “, a entrada do espectáculo seria gratuita, aberta a toda a população. As ruas engalanaram-se de bandeiretas, cartazes coloridos espalhados um pouco por toda a parte anunciando “ A inauguração do ano, o espectáculo mais aguardado, um acontecimento único”.

O edifício era bonito – pensou – talvez um pouco moderno a mais para o seu gosto, mas mesmo assim bonito.

Ajeitou a gravata e lá foi entrando, por entre uma multidão curiosa e nada habituada a tapeçarias vermelhas no chão e um espaço a fazer lembrar propositadamente os salões de baile do século passado.

De caminho, ainda cumprimentou algumas pessoas – era capaz de jurar que mais de metade da população da cidade se acotovelava ali – e lá foi procurar o seu lugar, algures num dos pequenos camarotes laterais, a meia distância do palco.

Silêncio… e os acordes inconfundíveis de Tchaikovsky, no primeiro dos três actos da peça, encheu o espaço do grande teatro.

O rei e a rainha, orgulhosos da sua princesinha Aurora, convidavam todas as fadas para a festa do baptizado.

Os espectadores, completamente hipnotizados pelo cenário de magia e encantamento, soltavam aqui e ali pequenos “ais” e “uis” de espanto, de cada vez que um dos bailarinos efectuava um salto mais arrojado, uma das fadas deslizava em pontas, ou a rainha deslizava pelo salão, puxada pelo rei.

“ A bela adormecida”… era, ela própria, um encantamento.

Paulo levou a mão ao bolso, mortificado.

O som… novamente aquela musiquinha que passara tantas e tantas vezes na rádio, o som que adivinhava uma fileira inteira de luzes verdes acesas. Entrou em pânico, corando de embaraço.

- Perdão… perdão…. Julgava tê-lo desligado….

Procurou nervosamente o interruptor do pequeno aparelho, amaldiçoando-se pelo esquecimento imperdoável de não ter retirado o Gps do bolso do casaco, antes de sair de casa.

Os espectadores ao lado lançaram-lhe um sorriso meio irritado, meio compreensivo.

Encolheu-se na cadeira, como um garoto apanhado no meio de uma diabrura.

E então… ouviu.

Aquele som familiar…. A mesma musica… algures numa das primeiras filas da plateia, quase junto ao palco. Debruçou-se sobre a amurada do camarote, tentando aperceber-se da origem, da localização exacta do som. Reparou num vulto, remexendo-se nervosamente na cadeira e quase que apostava que dali provinha o som… e que ali estaria… o outro Gps.

Ao intervalo, mal as luzes se acenderam, a primeira coisa que fez foi espreitar de novo, na direcção que fixara.

Bem no local onde esperava ver alguém…. Uma cadeira vazia, a única cadeira vazia porventura em toda a sala.

Sentiu uma sensação estranha, indefinida.

E quando, no final da peça, abandonou o recinto, ia rodando nervosamente o pequeno aparelho entre os dedos. Algo não estava bem… e ele sentia-se desconfortável com isso, como sempre se sentira, quando uma situação lhe fugia ao controle.

E naquele caso…. Percebia que não controlava nada, rigorosamente nada.

Tomara uma decisão.

No dia seguinte, iria devolver o Gps.

Mas não foi.

Nem nesse dia, nem nos seguintes, que foram de trabalho intenso.

No consultório, a dona Teresa voltara a sentir queixas, o senhor Joaquim protestava por não ter perdido um único quilo durante toda a semana, as gémeas Vasconcelos não conseguiam compreender porque motivo a mesma dieta só conseguia emagrecer uma delas e o vereador Alfredo, no rescaldo de uma complicação de intestinos, precisava urgentemente de ajuda.

O final do dia soube-lhe melhor que o toque da campainha, dos tempos da escola.

Respirou de alívio, ao despedir-se do ultimo paciente.

Tentara despachar-se mais cedo… sem sucesso.

Não por ser o dia do seu aniversário…. Há muito que não ligava a tais pormenores. Mas apesar de não projectar nenhuma festa ou encontro familiar, lembrara-se que talvez fosse agradável ir comprar um bolo – ou pelo menos uma guloseima – para tornar o final da refeição um pouco diferente de todas as outras.

- Coco, certamente… se encontrasse algo …. Talvez um bolo de coco…. – ia pensando para si mesmo, enquanto se dirigia ao centro comercial do fundo da rua.

Os jornais desportivos, expostos na banca da esquina, chamaram-lhe a atenção. Desviou um pouco a rota e foi espiar as capas, para se informar das novidades.

Quando leu o cabeçalho do primeiro, sentiu que algo ia acontecer.

Um estremecimento premonitório, um formigueiro nos dedos, algo. E instantaneamente, soube o que aconteceria a seguir.

Não se enganou.

Surgidos do nada, dois aparelhos começaram a tocar em uníssono uma música que já lhe era bem familiar…

Nervoso, levou a mão ao bolso. Ao menos ali, em plena rua, não se precisaria de preocupar com o som. Mas havia algo… algo. Porque sabia que quando se voltasse para trás….

Virou-se de repente, preparado para tudo.

- Margarida…

- Dout… Paulo?

Durante longos momentos permaneceram imóveis, as mãos segurando os pequenos aparelhos, incansáveis na sua musiquinha, fileiras de luzes verdes acesas.

- Mas como é… possível? – O teatro….

- O cinema…. Eu não sabia…

Um minuto depois, os dois aparelhos silenciaram-se, automaticamente programados para tal. Encontrar e ser encontrado era – talvez – uma mera parte de algo muito maior, algo que porventura escaparia sempre ao entendimento dos inocentes Gps, programados para um encontro.

Os proprietários dos pequenos cupidos electrónicos cruzaram olhares.

A vida era estranha.

Não só irónica…. Como estranha.

Precisaria tudo de ter uma explicação?

- Queres…. Eu ia, bem… eu ia ali comprar algo…. Aceitas um…

- Parabéns, Paulo… eu sei que fazes anos hoje….

Ela sorriu, divertida com o embaraço dele.

- Tu sabes… essa agora… como sabes tu isso?

- Ora… uma mulher não pode revelar todos os seus segredos, pois não?

Ele permanecia imóvel, à espera de um “clic” para retornar à vida.

- Bom… e então? – lá continuou ela – julguei que me ias oferecer um café. Ou já mudaste de ideia?

Rumaram ao café do outro lado da rua, os gps mudos ainda esquecidos nas mãos.

Entardecia.

Era Julho.

De um verão antecipado, como eram agora todas as estações. Antecipadas.

Ou – quem sabe – talvez fosse aquele o tempo certo.

Pelo menos para alguns.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O adeus às armas




- Chegou a hora?

- Chegou sim… chegou a hora…

- Sabes que não precisas… podes sempre… podes sempre ficar…

- Eu sei… a sério que sei… e obrigado por insistir…

- Faço com gosto, sabes que nesta casa tens uma família, uma família enorme…

- Sei sim… e já sinto saudades de todos eles, antes de partir…

- Já te despediste de todos?

- Já… estive com eles no refeitório… à excepção do Pedro, disseram-me que tinha ido visitar o pai…

- É verdade, sim… o nosso Pedro tem o pai doente… espero que não seja nada de grave…

- Fizeram-me a festa… o Rodrigo até me ofereceu aqui um presente de despedida, com a exigência de só o abrir lá fora…

- Moço esperto, o Rodrigo… eu teria feito o mesmo. E sabes… tu sempre foste um exemplo… para todos eles…

- Não diga isso, professor, que exagero.

- Não é exagero nenhum, é a pura verdade. Todos eles te têm a maior consideração…

- Ora, ora… já se esqueceu que eu era o mais reguila? Aquele que sempre destabilizava a turma inteira?

- Claro que me lembro… mas mesmo assim. Tu tinhas as ideias… e eles seguiam-te. Sempre foste um líder nato.

- Mesmo discordando de si? Nas nossas zangas habituais?

- Claro que sim… e zangas? Quais zangas? Nós nunca nos zangámos, limitámo-nos só a falar mais alto um com o outro, nada mais…

- Pois… é verdade, sim… não me recordo de algum dia me ter zangado consigo, professor…

- Nem havia motivo para isso… lembras-te quando eu te expliquei os dogmas? Ficaste uma fera…

- Claro que me lembro… aliás, ainda hoje fico uma fera, quando penso neles…

- Não ficas nada… isso é só um disfarce…

- Não é não… fico mesmo uma fera. Creio que nunca me predispus a seguir algo que não conseguisse compreender na totalidade.

- Sim, lembro-me de me teres argumentado algo do género… mas sabes… mesmo que não concordes com eles… a verdade é única, apoia-se em leis, doutrinas… e nem todas nos são acessíveis… lembras-te de conversarmos sobre isto?

- Lembro… como me lembro… não foi numa dessas aulas que me chamou herege?

- Ora, foi a brincar… eu estava exaltado, tu estavas sistematicamente a pôr em causa tudo o que eu te dizia…

- E o resto da turma na paródia…

- Sim, essa foi a gota de água… como naquele dia em que se falou do casamento, lembras-te? Da primeira vez em que falámos desse assunto…

Fez-se silêncio.

- Não queres mesmo mudar de ideias, Rafael? Tu serias um excelente pastor de almas, tens um condão para explicares em palavras simples aquilo que por vezes nem os doutos conseguem… com os livros na mão.

- Não posso, professor… sabe que depois, um dia qualquer, teria que sair…

- Ainda as mulheres, Rafael? O eterno problema das mulheres?

- Também, professor… mas não só. Sabe bem que nunca foi só isso… talvez isso tenha sido a face visível de tudo o resto, nem sei…

- É uma opção de vida, Rafael, simplesmente uma opção. Não casar, dedicar a vida a uma causa maior, a objectivos maiores, à maior família de todas…

- Eu sei… mas não é a minha… e é verdade o que diz, eu seria um excelente pastor… mas não vou abdicar de uma família, naquele sentido mais pequeno, sabe? Mulher, filhos, cachorro, periquitos…

Novamente silêncio.

A porta do seminário continuava entreaberta, separando de forma invisível dois mundos.

- Vais casar, Rafael? Estás apaixonado, é isso?

- Não… que eu saiba não…

- Então? Ainda podes voltar atrás… e ficar…. Terias tempo para amadurecer esses pensamentos e como tu próprio reconheces, se nem estás com problemas de coração, se a carne nem te tenta, se nem apaixonado estás… porque não ficas?

Um último silêncio e o pegar dos dois pesados sacos de roupa.

- Por algo tão ínfimo, professor… que nem lhe sei explicar isto de outro jeito… porque quer o faça ou não faça… quer sinta essa tentação ou não…quero ter a liberdade de o poder fazer…

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Nem tudo o que parece...


Não. Claro que não.

Levou a mão aos óculos, naquele gesto instintivo de quem esfrega os olhos ao acordar. Mas novamente não; para além de um borrão de gordura nas lentes, não conseguiu o efeito pretendido, ou seja… acordar.

E no entanto, mesmo depois de abrir e fechar os olhos várias vezes… a visão permanecia.

Travou suavemente, absorto e em êxtase.

Claro que em sonhos, até mesmo em filmes, a situação seria banal, corriqueira até. Mas na vida real, no monótono percurso entre a casa e o local de trabalho, na vizinha cidade a uma vintena de quilómetros… aquela visão não tinha nada de banal. Mesmo nada.

Ela – pois que de uma ela se tratava – continuava parava na berma da estrada, o gesto inconfundível de mão estendida e dedo esticado a pedir uma boleia para qualquer lugar.

E… se isso não bastasse… como qualificar a pele morena, generosamente revelada sob os calções mínimos ou aquela camisa axadrezada, com um nó bem acima do umbigo?

Pois… não havia palavras…simplesmente a sensação de que uma miragem descera à Terra e o presenteara com uma dádiva reservada a poucos mortais.

Um frémito de excitação percorreu-lhe o corpo ansioso.

Travou - desta feita com ímpeto – o coração a palpitar-lhe junto à boca.

Uma coluna de pó envolveu o automóvel, já de si bem precisado de uma lavagem, e ele esperou pacientemente que a mulher se acercasse. Sem querer, deu consigo a mirar-se ao espelho e a ajeitar o cabelo com a mão, num gesto instintivo de compor a imagem, um pouco empalidecida pelo passar dos anos.

Já não era um jovem de dezoito anos… mas não se sentia propriamente velho; pelo menos, gostava de se descrever como um jovem de espírito, mau grado aquela barriguinha proeminente e a cabeleira grisalha que anunciava os quase cinquenta… ou seja, as quarenta e nove primaveras.

Esperou, esperou… e continuou a esperar. Onde se teria metido a mulher? Bem que procurou descobri-la pelo espelho retrovisor, mas nada. Nem tão pouco da sacola de couro ou do guarda-chuva cor-de-rosa que julgara ver na estrada, aos pés dela. Onde estaria?

- Dá-me uma boleia para a cidade?

A princípio nem reparou nele, completamente desnorteado. Bem que esticou o pescoço para trás, tentando descobri-la. Mas onde? Uma mulher daquelas não podia, pura e simplesmente, evaporar-se assim. Não, seria crueldade a mais. E tinha a certeza que mais nenhum automóvel parara no local, a estrada continuava deserta. Então… onde, onde estaria a mulher?

- Obrigado, amigo… - e o velhote, perante o silêncio dele – quem cala consente – lá abriu a porta do lado do passageiro e, sem se fazer rogado, sentou-se bem ao comprido no assento. - … estas pernas já não são o que eram, sabe? Cheguei a fazer este caminho a pé, imagine…

- Mas… mas…. Eu ia… - ainda tentou dizer que parara por outro motivo, que vira uma mulher deslumbrante na berma da estrada, que nunca tivera o hábito de dar boleia a ninguém… mas o olhar aflito desmentia-o… e por mais que procurasse… na berma…. Até do outro lado da estrada…. Nada, nem sinal da estranha visão.

- Ó Homem… você está bem? – e o velhote fixava-o preocupado – até parece que está quase a ter um ataque de coração…

Finalmente… caiu em si. Uma alucinação, só podia ter sido uma alucinação; o calor, ou o excesso de trabalho, talvez até as ultimas noites mal dormidas – ou até o inevitável facto de não estar com uma mulher há muito tempo, demasiado tempo… mas fosse como fosse, era uma alucinação cruel. Nunca lhe acontecera tal.

- Não, não… - lá deu por si a responder ao homenzinho – está tudo bem… é só o calor… e para onde vai o meu amigo? Não me lembro de alguma vez o ter visto, aqui por estes lados… e eu que me gabo de conhecer quase toda a gente…

O velhote sorriu, os dentes amarelados a espreitar sob a barba mal feita.

- Vou para a cidade, pois então… vivo ali no morro, num daqueles reboques, sabe? E também não me lembro de alguma vez o ter visto, aqui nesta estrada…

Observaram-se mutuamente, como se do início de uma dança de salão se tratasse; o condutor do automóvel, vendedor de artigos de pesca, permanentemente em viagens pela região; o velhote mal vestido e de odor pouco higiénico – um par estranho, sem dúvida.

- Então hoje é dia de ir até à cidade, hem? – e o vendedor lá conseguiu sorrir, mal refeito do sucedido – vive aqui perto?

O velhote concordou, com um aceno de cabeça.

- Vivo… ali junto do lago, num daqueles reboques velhos que sobraram do parque de campismo, não sei se você conhece… é uma vida descansada…

O vendedor lá deu um puxão ao volante, evitando in extremis um buraco mais acentuado no asfalto.

- Vida descansada… era bom, era mesmo o que eu agora precisava, ando mesmo a precisar de reforma…

O velhote coçou a barba, num gesto repetido de quem tem por hábito fazer as coisas devagar, bem devagar.

- É mesmo… eu também já me reformei… estava farto de atender clientes chatos, presunçosos, sempre de nariz levantado e dedo espetado a dar ordens…. Sempre a dar ordens…

- Não me diga… e o que fazia você? Não me parece que seja assim tão velho…

O velhote riu-se.

- Pois não… claro que não sou assim tão velho… era tratador de animais… era isso que eu fazia… e sabe que mais? Há muitos donos que não merecem os animais que têm, não merecem mesmo… vi muitas coisas, muitas coisas… que você nem imagina…

Continuaram de conversa, uma vintena de quilómetros de cavaqueira descontraída. O vendedor de artigos de pesca estava encantado com o seu passageiro; o velhote sabia tudo sobre animais, é certo… mas também sabia que as trutas preferiam os rios mais frios, que os salmões apareceriam em Novembro e que desde que a nova barragem fora inaugurada, os peixes escasseavam, as garças fugiam para norte e os turistas deixavam cada vez mais lixo à beira do lago.

Alcançaram a cidade meia hora depois.

- Pode deixar-me aqui na entrada… junto do cruzamento…

O automóvel deteve-se e o velhote saiu, um pouco enferrujado das pernas.

- Obrigado pela boleia…

O vendedor acenou-lhe.

- De nada… você faz boa companhia… havemos de beber um copo juntos, da próxima vez que nos encontrarmos…

- Isso não sei – e o velhote lançou-lhe um olhar enigmático – quando me sentei até parecia que você tinha acabado de ver um fantasma… ou que estava a ter um ataque de coração…

Riram-se os dois.

Meteu a mudança e arrancou. De relance, ainda lançou um breve olhar pelo espelho retrovisor, para ter a certeza que o velhote estava bem, carregado com o saco, aparentemente bem pesado.

Agarrou-se com força ao volante, para ter a certeza. O que era aquilo?

Não… não podia ser.

Olhou novamente, como quem se recusa a acreditar na mais óbvia das evidências; não, não havia engano possível… era mesmo ela… a tal mulher… mas como… como podia ser? Estava a ficar louco…

E ela acenava-lhe com a mão, um adeus sorridente que uma fracção de segundo antes ele era capaz de jurar estar a ser feito pelo simpático velhote, parado naquele preciso lugar, à beira da estrada.

O saco… sim… como pudera nem ter reparado no pormenor? O saco era o mesmo, sempre fora o mesmo, só não reparara no guarda chuva cor-de-rosa… mas o que era aquilo tudo? Que estranha alucinação, ou sonho, ou fosse o que fosse? O que lhe estava a suceder?

Logo de seguida, reparou no pequeno papel, abandonado sobre o assento ao lado; provavelmente, caíra-lhe do bolso, ou o velhote o deixara cair, ao sair do automóvel. Soltou uma das mãos do volante para o poder apanhar e desdobrar.

Uma caligrafia miudinha, incerta, mas bem legível surpreendeu-o. Dizia simplesmente assim:

“ Nem tudo o que parece… é.”

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lara tinha um sonho...


Lara tinha um sonho; um sonho antigo, do tempo em que ainda sonhava a cores, deitada no berço em forma de concha, branco pérola.

Sonhava ver… o mar.

O mar era – diziam os velhos da aldeia – uma coisa grande, imensa de azul, um horizonte de água que não acabava nunca, para onde quer que a vista se perdesse. O mar era povoado de monstros, de gigantescas serpentes e seres demoníacos, de sereias enfeitiçadoras de homens, que engoliam embarcações inteiras e as devolviam à praia destruídas em minúsculos grãos de areia.

Tudo isso Lara ouvira na sua infância, durante as brincadeiras no recinto da escola, nas conversas de café, nos relatos do pastor Josué, que antes de ser pastor já fora pescador. E Josué contava, sempre de copo de rum na mão, a terrível luta que travara com um desses monstros marinhos, que lhe levara a perna direita. Às vezes, no calor da refrega, esquecia-se de pormenores, trocava a perna direita pela esquerda, confundia-se com o tamanho e aspecto do terrível monstro que o atacara, mas todos lhe perdoavam os exageros – afinal de contas, Josué perdera mesmo uma perna, que importância tinha se o monstro tinha mais ou menos metros de comprido, fumegava pela boca ou pelas narinas? Importância nenhuma.

- Mas porque não posso ir ver o mar, mãe? Todos dizem que são só alguns dias de viagem… e é o que eu mais quero na vida, sempre desejei, sempre…

A mãe franzia o nariz e voltava às lides da casa, repetindo-lhe o “não” costumeiro.

- Porque não… ainda és muito nova para abandonares a aldeia sozinha… e que ideia tão ridícula é essa de querer ver o mar? Eu tenho o dobro da tua idade, nunca vi o mar e olha para mim… achas que me fez alguma diferença?

Fazia.

Fazia muita diferença.

Gioncela, a mãe de Lara, era ainda uma mulher jovem, mal entrada nos quarenta. A vida rude dos campos tisnara-lhe o rosto de rugas escuras de tanto sol e calejara-lhe as mãos da enxada. Enviuvara cedo – dizia – apesar de ninguém na aldeia lhe conhecer qualquer familiar. Muitos anos atrás, numa noite fria de inverno, chegara descalça e com uma criança envolta em panos nos braços. Lara.

A viúva do padeiro abrigou-as sob o seu tecto, deu-lhes guarida, comida e um pequeno quarto no fundo do quintal, paredes meias com o forno.

Tudo isso acontecera há quase vinte anos.

Lara crescera – uma criança igual a todas as outras, traquinas – num mundo pacífico, amigável, rodeada de amigos e vizinhos, sem mais preocupações que ajudar a mãe nas lides domésticas e na entrega dos pães, todas as manhãs.

A felicidade era assim feita de coisas simples… e pequenas.

Naquela madrugada, bem antes do nascer do sol, levantou-se em silêncio. Já deixara a trouxa preparada junto à porta, um punhado de roupas e alguns alimentos para a viagem, coisa pouca. Pé ante pé, fechou a porta do quarto, pegou nos pertences e saiu para a escuridão do exterior. Estava decidida.

A viagem demoraria três, quatro dias no máximo.

Com um pequeno cordel, atou a saia um pouco mais acima, para evitar os arbustos e as pedras do caminho.

E fez-se à jornada, sem olhar para trás.

Se tivesse olhado, talvez reparasse no olhar furtivo que a seguia, escondida numa das janelas da casa.

Gioncela, a mãe, há muito sabia que nada demoveria a filha daquela viagem.

Um sorriso triste assaltou-lhe o rosto.

O passado repetia-se – pensou. E nada podia fazer para o evitar.

Lembrava-se sim…. Muitos anos atrás…. De ela mesma abandonar a casa paterna, fugir até à orla do mar. perdera-se de amores por um marinheiro, um moço alto de caracóis negros e olhar de falcão, que a enfeitiçara desde o primeiro momento.

Entregara-lhe o corpo, entregara-lhe a alma, entregara-lhe todos os sonhos, o futuro; tudo o que tinha…. E o que ainda desejava ter.

Nunca mais o viu, desde o dia em que o barco partiu, rumo a algum porto distante. O barco voltou, ele não.

Dele, para além da lembrança, restava simplesmente aquela semente que já sentia a mexer dentro de si. Lara.

Mas tudo isso era passado, histórias de outros tempos.

Gioncela voltou a deitar-se, sem conseguir mais conciliar o sono.

Quando Lara parasse para tomar a primeira refeição do seu farnel, talvez reparasse no pequeno objecto que a mãe lá colocara dentro, pela calada da noite. Um pequeno amuleto em forma de cruz, que um marinheiro alto, de caracóis negros e olhar de falcão lhe oferecera a ela, há muito, muito tempo atrás.

- Sê feliz, Lara… - balbuciou – sê feliz…

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A primeira vez...


A primeira vez.

Há sempre algo de mágico na primeira vez de qualquer coisa – pensou. O primeiro respirar, o primeiro passo, a primeira palavra, o primeiro amor, a primeira viagem, o primeiro filho…

Naquele momento, porém… se pudesse traduzir em palavras a amálgama de sentimentos que o percorria, não escolheria a palavra “magia” para os descrever – talvez antes ansiedade, medo, pânico.

Pânico, sim… verdadeiro pânico.

E no entanto… há muito que desejara aquele momento, sonhara com ele durante meses a fio, todo o tempo entre o preencher dos papéis, os formulários de candidatura, todos aqueles códigos de escolas… até ao momento da publicação das listas… até ver o seu nome no meio de todos os outros, com o nome de uma escola… o nome da escola onde daria a sua primeira aula… da sua futura vida de professor.

Mas – dirão vocês – o que tem isto assim de tão especial? Claro que teria que existir uma primeira vez… uma primeira escola.

É verdade, claro.

Mas ainda não vos contei tudo; o jovem Roberto, diploma de curso ainda fresco pendurado na parede do quarto fora colocado para leccionar o seu primeiro ano de profissão… precisamente na sua terra natal, na escola onde estudara durante toda a adolescência.

Conhecia daquele edifício todos os recantos, e todos os recantos tinham histórias para contar. Ali fizera grandes amigos, ali se apaixonara pela primeira vez, ali arranjara uma cicatriz na perna – resultado de uma briga com um colega – ali fumara às escondidas o primeiro cigarro.

Recordações, muitas recordações.

Mas para além disto tudo… ainda existiam… os professores. Sim, claro… teria que arranjar umas gramas extra de coragem para chamar “colega” a alguns dos seus velhos professores, ainda em exercício de funções. Não sabia bem como… quando chegasse a altura, logo se veria.

E como se tudo isto não bastasse… ainda sobrava mais um pormenor. Mas enfim… esse último pormenor… só quando ouvisse o som familiar da campainha a anunciar a primeira aula…

Nervosamente, atravessou a rua e galgou o portão. A dona Gracinda, sempre prestável na portaria, lançou-lhe o melhor dos sorrisos. Ele retribuiu – não se lembrava de a ver sorrir assim, nos seus tempos de aluno. Será que só sorria para os professores?

O hall de entrada. Ah… estava praticamente na mesma, as paredes ainda pintadas de branco e rosa, os rodapés de azulejo antigo, vestígios de um tempo em que todo o edifício, antes de ser escola, fora a residência de um morgado abastado da terra. As escadas… sim, claro, dois lances de vinte e cinco degraus cada, um pequeno patamar a separá-los. E finalmente… o longo corredor, soalho de madeira, portas dos dois lados, as salas de numero par de um lado, impar do outro.

Evitara a sala de professores naquele primeiro momento. Havia tempo, muito tempo.

A sua atenção estava concentrada sobre a última porta do corredor, a sala numero sete.

Desdobrou pela enésima vez o horário que lhe havia sido atribuído e não havia engano; segunda feira, primeiro tempo da manhã, sala sete, turma B do décimo segundo ano. E em anexo, uma lista dos alunos da turma, acompanhada das respectivas fotografias.

Pelo canto do olho, reconheceu alguns dos rostos, ao longo do corredor. Seriam miúdos na altura… agora finalistas, o tempo passara depressa.

O tempo… quanto tempo?

Não era difícil fazer contas… os anos de universidade na capital, tempo mais que suficiente para a renovação completa de toda aquela massa humana. Toda? Bem, não forçosamente toda… ainda existiam aquele punhado de resistentes, que de ano a ano lá renovavam a matricula, umas vezes desistindo a meio, outras vezes reprovando nos exames, por vezes mesmo sendo excluídos por excesso de faltas. Enfim… nada que não acontecesse em todas as partes, em todas as escolas.

Sem dar por isso, alcançara a porta da sala sete. Uma vintena de rostos curiosos acotovela-se para observar de perto a cara nova. Ele abriu a porta e entrou, olhando distraidamente para o quadro, fazendo-lhes sinal para que o acompanhassem.

No meio da normal algazarra de um primeiro dia de aulas, lá foram entrando a conta gotas pela porta estreita, qual ponte levadiça de um castelo bem protegido.

Ele apoiou-se sobre a secretaria, ficando a observá-los – alegres e faladores – desmanchando as mochilas, exibindo os headphones, comparando os gorros, bonés e os ténis último modelo acabados de sair no mercado.

Não o podia evitar por mais tempo e lá levantou os olhos, meio envergonhado, em direcção à última fila de cadeiras. Já sabia de antemão o que iria encontrar, o coração saltara-lhe pela boca quando passara os olhos pela lista de alunos da turma, nem precisara de ver as fotografias.

E ali estava ela.

Encontrou-lhe o olhar e sorriu, meio atrapalhado por tão improvável reencontro. Mas a vida é feita de coincidências, sinais, ou o que lhe quiserem chamar. E quis o destino ou o acaso que a Fátima, sua colega de carteira durante vários anos, agora ali se encontrasse, a aluna mais velha da turma, depois de um interregno de algum tempo sem estudar e de um outro ano em que desistira a meio.

Separados… e novamente reunidos, numa sala onde no passado tantas e tantas vezes haviam rido, conversado, estudado. Até houvera um tempo, de saudosa memória, em que ele quase, quase… mas não, nunca teria resultado, tudo não passara de uma paixoneta da adolescência.

E agora… ali estava ela, perturbadora e de sorriso indefinível, sentada na última fila, aguardando que ele, agora professor, fizesse a tradicional chamada.

Era aquele o momento que ele mais receara.

Inspirou fundo, como quem procura alento para a batalha. A primeira batalha.

Pousou o livro de ponto sobre a mesa. Não… não lhe apetecia começar o resto da vida chamando os alunos um a um, conferindo-lhes o nome e a fotografia.

- Bons dias a todos… para aqueles menos curiosos e que ainda não me conhecem… o meu nome é Roberto, Roberto Paulino e … nesta sala, a minha cadeira era aquela ali ao fundo… ao lado da vossa colega… Fátima…

Ela sorriu, os olhos da turma momentaneamente desviados na sua direcção.

Roberto, o professor, atalhou-lhes os planos.

- … Exactamente… era ali o meu lugar… e garanto-vos que fui muito feliz ali. Claro que de vez em quando apanhei alguns sustos e…

Deixou-se embalar. Por um segundo, pensara não conseguir. Evitar olhar para ela, evitar o nervosismo, tropeçar nas palavras… mas afinal… era mais fácil do que pensara, era quase como contar uma história, uma história que tivesse que inventar de propósito para adormecer alguém. Claro que ali o objectivo não era o de adormecer ninguém… mas simplesmente o de encantar, cativar, seduzir… e espicaçar a curiosidade de todos aqueles rostos expectantes.

- Ok… antes que alguém pergunte, pergunto eu… há alguém aqui que faça anos no mesmo dia que eu?

A turma trocou olhares de surpresa. Difícil de responder, tendo em conta que para tal seria necessário saber a data de aniversário dele.

Uma rapariga ruiva da segunda fila lá arranjou engenho para se arriscar:

- Depende, não é? A gente não sabe em que dia é que o s’tôr faz anos…

Ao fundo, Fátima mal conseguia conter o riso. Sim… aquele era o Roberto que ela recordava bem… e sim… fora bom tê-lo como colega, certamente seria igualmente bom tê-lo como professor…

Ele piscou-lhe disfarçadamente o olho, como que a perguntar: “ Que tal me estou saindo?”

Ela sorriu-lhe de novo e mexeu os lábios em surdina:

- Bem… vais muito bem…

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O carteiro Infeliz

José Maria da Conceição Infeliz. Peculiar nome, sem dúvida... mas real, tão real como o dia em que nascera, 29 de Fevereiro de 1932, ano bissexto, na pequena povoação de Casal Batista, algures na serra da Lousã, paredes meias com o rio.

A própria história de tão original nome seria digna de um conto – mas não, não é esse o tema destas linhas, apesar de apetecível. O senhor Infeliz, quase nos oitenta, era um manancial inesgotável de peripécias, aventuras, histórias rocambolescas, acasos e coincidências, dificilmente repetíveis num qualquer outro ser humano. E no entanto, o nosso protagonista exercia a mais pacata das profissões, horas a fio ao pedal da sua bicicleta vermelha, sacola a tiracolo, distribuindo pacotes e sorrisos.

O senhor José Maria da Conceição Infeliz… era carteiro. Mas não, não fiquem a pensar num daqueles carteiros modernos, sempre apressados para terminar o giro, correndo a distribuir a publicidade de porta em porta. O senhor Infeliz distribuía cartas… e tinha um dom, um dom especial na ponta dos dedos que o tornava único.

- Dona Zulmira, que prazer em vê-la – lá ia cumprimentando – está cada vez mais nova…

E a dona Zulmira, rondando os setenta, sorria-lhe embevecida, mesmo quando ele nada tinha para lhe entregar. Sim… porque ali, na aldeia de Porto do Carro, onde o nosso carteiro prestava serviço, a maioria das cartas limitava-se aos cheques das pensões, às contas da água ou luz que todos preferiam nem receber… ou a algum primo emigrante que escrevia da Suiça, a contar as novidades. E o senhor Infeliz, com a sabedoria que a prática da profissão confere, já sabia de antemão a reacção de cada um, ao receber as suas cartas.

- Olh’o nosso Alfredo… tem aqui carta para si, ó homem… e pelo perfume devem ser boas noticias…

E deixou-lha nas mãos, ficando a vê-lo rir-se. Era bom homem, o senhor Alfredo, provavelmente a carta era da mulher, a padeira da aldeia, que fora visitar o pai doente, lá para os lados de Braga.

Acenou-lhe um adeus e lá continuou descendo a rua, em direcção ao café da praça.

- Zé Maria, Zé Maria… não há nada para mim?

O carteiro nem precisou de se virar, a voz inconfundível da menina Aurora dispensava apresentações.

- Hoje nada, menina Aurora, hoje nada… tenho a certeza que chegará amanhã…

Claro que não chegaria, mas isso não estava na sua mão. A menina Aurora, para além de impaciente, era uma incorrigível gastadora, conseguindo esbanjar a parca pensão mensal na primeira semana. Claro que logo a seguir encetava aquela ladainha diária, suspirando pelo dia da chegada do cheque seguinte… que nunca mais chegava.

- Cabo Martins… a factura da luz… - e mais uma carta entregue.

O cabo Martins, que prestava serviço em Leiria, lá torceu o nariz, resignado.

- Zé Maria… você só me entrega cartas tristes, já viu? Não tem para aí nada mais engraçado? Só facturas ?

O carteiro ria.

- Ora, ora… então se você não escreve a ninguém… está à espera que lhe escrevem a si, é? A que propósito?

Lançou a mão ao saco. Ah… a sensação era agradável. Sim… podia sentir… boas noticias. A senhora Matilde ficaria radiante… um novo netinho, noticias da filha…

- Dona Matilde, será rapaz ou rapariga? – e deixou-lhe cair o envelope nas mãos, com um sorriso.

- Oh, Zé Maria, como é que você sabe? Consegue adivinhar o que está cá dentro escrito, é isso? Você é bruxo?

O bom do Zé Maria ria, os olhos alegres que nunca acompanharam a idade do corpo.

- É um palpite, dona Matilde, é um palpite… e creio que será uma netinha…

E avançou mais umas pedaladas, rumo à praça. Tempo mais que suficiente para ainda a ouvir rasgar apressada o sobrescrito e gritar do cimo da rua : “ Chama-se Isabel, Zé Maria… a minha netinha vai chamar-se Isabel… “

Pois claro que se chamaria Isabel, lindo nome. Não precisava de abrir as cartas para lhes sentir o conteúdo, é verdade. E se no principio achara isso estranho, quase doentio, o certo é que agora até se deleitava com o prazer de entregar boas noticias, cartas de saudades, cartas de amor, cartas de amigos distantes. Também é verdade que de vez em quando as noticias não eram tão boas e custava-lhe… custava-lhe bastante sentir a dor ao segurar o envelope branco e ter que sorrir, disfarçando, enquanto entregava uma carta a alguém – o falecimento de um parente, um azar do negócio, um acidente, enfim… um dos muitos imprevistos da vida.

Tocou a pequena campainha da bicicleta.

- José António… venha cá à minha beira… tem aqui uma carta registada… venha cá assinar o papelinho…

O dono do café lá interrompeu a limpeza das mesas da esplanada, atirou a toalha sobre o ombro e resmungou qualquer coisa inaudível, parecida com um bom dia.

- Outra multa, com certeza… o que terei eu feito desta vez?

Lá lhe deixou o envelope, bastante pesado por sinal. E o José António tinha razão, era mesmo uma multa. Para a próxima, que não tivesse o pé tão pesado no acelerador, a caminho de Leiria.

Lançou de novo a mão ao saco.

Sem ver, sentiu que a carta era dirigida à viúva Deolinda, que infelizmente talvez já nem a conseguisse ler, tão doente se encontrava.

De hospital em hospital, doença prolongada, radioterapia, quimioterapia, experiências, novos fármacos… e finalmente, o regresso a casa, para passar na paz possível os últimos dias de vida.

Era boa pessoa, a viúva Deolinda – modista de profissão, e das boas. Metade da aldeia vestira os seus trajes de domingo saídos daquelas mãos habilidosas, uma bordadeira por excelência. E, apesar de ainda não ter tocado os setenta, a doença. O fim anunciado.

O filho, moço escorreito e com ares do pai, era militar, ausente no estrangeiro numa daquelas missões de paz que a dona Deolinda não compreendia muito bem. Preferia que o filho prestasse serviço ali mais perto, porque não em Leiria, ou até mesmo em Lisboa… mas ele dizia-lhe sempre que no estrangeiro ganhava mais… e que não corria perigo nenhum, nem sequer ainda disparara um único tiro.

A dona Deolinda acalentava a secreta esperança de ainda ver o filho… uma última vez.

O senhor Infeliz parou a bicicleta, o sorriso momentaneamente ausente. A carta… a carta continha mais qualquer coisa… e não era coisa boa… bem pelo contrário… notícias sim, mas más notícias, péssimas notícias.

Pelo remetente, adivinhou todo o conteúdo, mesmo sem abrir o sobrescrito.

Por um longo momento, passou as mãos sobre o envelope, angustiado.

Numa folha branca, cheia de carimbos e selos oficiais, alguém dizia de forma lacónica que Hélder de Jesus Monchique, o filho de dona Deolinda, morrera ao serviço da pátria, na missão de manutenção de paz que cumpria no estrangeiro. Apresentavam-se condolências, disponibilizava-se ajuda psicológica à família, enviavam-se as minutas dos formulários necessários a toda a burocracia.

E agora?

Como entregar a carta, sabendo de antemão que dona Deolinda esperava ansiosamente o regresso do filho, agarrada a essa esperança, talvez como o último balão de oxigénio, antes de finalmente poder descansar em paz?

- Então Zé Maria? Descansando em serviço? Estás a ficar velho…

O senhor Infeliz nem lhe respondeu, pela voz reconhecera logo o Matias, o eterno bem disposto e contador de anedotas da aldeia. Acenou-lhe simplesmente um gesto distraído, os dedos a queimar sobre o envelope branco.

Precisava de fazer algo.

Não era a primeira vez… e naquele momento sentiu que afinal… afinal talvez existisse um motivo, um propósito, uma razão maior para aquele seu dom de sentir com a ponta dos dedos… o conteúdo das cartas que entregava todos os dias.

Porque o seu dom… e só o fizera uma vez, uma única vez em toda a vida… ia um pouco mais além daquele simples sentir.

José Maria da Conceição Infeliz… podia fazer algo mais… e naquele momento, sabia que o deveria fazer.

Recordou que ainda no mês anterior não pudera entregar uma carta, precisamente do filho da dona Deolinda, porque havia ficado retida na central de distribuição; aparentemente um problema menor de falta de selos, ou em quantidade insuficiente. Chegara a tê-la nas mãos, sentira-lhe o conteúdo, uma carta alegre com duas fotografias do Hélder e dos amigos, bebendo cervejas num qualquer bar. Sabia que inclusivamente dizia à mãe que lamentava imenso não poder vir a casa pelo Natal, mas que ela não se preocupasse, pelo Carnaval viria visitá-la, com toda a certeza.

Sabia o que tinha que fazer.

Voltou a colocar a fatídica carta dentro da sacola e recomeçou a pedalar, em direcção à casa da dona Deolinda.

Bateu à porta e apareceu a vizinha do lado.

- Olá, Zé Maria… - cumprimentou ela – trás carta para a Deolinda?

Ele colocou o mais alegre dos sorrisos.

- Claro que trago. E são boas notícias para a nossa menina. Como está ela hoje?

A vizinha abanou a cabeça.

- Pior, Zé Maria, pior…

- Vá, não se preocupe… vá lá levar-lhe esta carta, vai ver como ela ficará logo outra…

E levou a mão à sacola, retirando o mais vulgar dos envelopes. Vulgar, excepto talvez pelo facto de não ter selos.

- Dê-lhe cumprimentos meus, está bem?

A vizinha acenou novamente e ficou a vê-lo partir, pedalando de novo rua acima.

O senhor Infeliz não queria olhar para trás.

A carta entregue – feita a troca – não salvaria a dona Deolinda, é verdade. Mas pelo menos não lhe retiraria tão cruelmente a paz e a esperança e afinal, como dizem… não é a esperança a última coisa a morrer?

A dona Deolinda morreu dois dias depois, uma semana antes de o senhor Infeliz tirar de novo da sacola a carta, cheia de carimbos e selos oficiais.

E pela segunda vez em toda a sua vida, José Maria da Conceição Infeliz sentiu-se o mais feliz dos homens, por poder reescrever o presente, sem alterar o futuro.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Dez segundos para a meia noite

"Onde levam os passos?"

Não sabia a resposta. Sabia simplesmente que deveria caminhar, caminhar sempre, sem olhar para trás.

Puxou a gola para cima e apertou o cachecol. O frio fazia-se sentir, húmido e desagradável, acompanhado de um vento norte que teimava em agitar as folhas das árvores. O inverno, ali, era sempre assim - cinzento e chuvoso.

Debruçou-se sobre a amurada da ponte. Do outro lado do rio, a margem fervilhava com os transeuntes ansiosos, olhos postos no céu, à espera do primeiro clarão. Luzes, gritos, a torre da igreja engalanada, as iluminações de Natal a emprestar às ruas um ar festivo e aconchegante.

- Porque não será sempre assim? - deu consigo a pensar, enquanto percorria com o olhar a longa marginal, pejada de uma massa humana em constante movimento.

Dez segundos para a meia noite.

Era estranho... o significado que cada um podia atribuir às coisas, consoante a disposição, o estado de espírito, o dia do ano... porque seriam aqueles últimos dez segundos do dia assim tão especiais? Simplesmente por serem também os últimos dez segundos do ano, de mais um ano? E porquê toda aquela ansiedade, aquela excitação, as passas contadas na mão, as mãos crispadas nas rolhas das garrafas de champanhe, à espera das badaladas do relógio da igreja?

Porquê?

Há muito, muito tempo atrás... recordava-se de ser criança... e de toda aquela excitação. A mãe dizia-lhe " tens que ser rápido, não te esqueças... pegas numa passa, formulas um desejo, outra passa, outro desejo... não te atrases, tens que acompanhar as badaladas do sino..."

Ah... não, nunca conseguira, perdia-se sempre. À quarta ou quinta passa, já misturara todos os desejos e só pensava em colocá-las rapidamente na boca, antes que o sino anunciasse a décima segunda badalada e o principio do ano novo...

Seria por isso que nem todos os seus desejos se concretizavam? Pelo karma atrasado de todas aquelas passas engolidas à pressa, nos felizes anos da infância e adolescência?

Sorriu. Sim, talvez... era uma hipótese.

A primeira badalada interrompeu-lhe o devaneio. Forte, acompanhada de um clamor de gritos. E depois uma segunda e ainda uma terceira.

- Onde levam os passos?

Puxou do bolso o pequeno saco de flanela vermelha e de lá retirou um par de amendoins, que levou à boca.

A multidão, do outro lado do rio, exultava.

Seis... cinco... quatro...

Por um segundo, um ínfimo segundo... apeteceu-lhe estar ali com eles, mergulhado naquela alegria contagiante, gente anónima sem um propósito, simplesmente eufórica com o desejo que o novo ano fosse sempre melhor que aquele que findava. E mesmo sem mais certezas para além desse ingénuo desejo... preparavam-se os copos, atentos ao saltar das rolhas...

Voltou de novo a atenção para a fotografia que segurava na mão; um rosto de pele tisnada, já bem entrado nos anos, olhos azuis, cabeleira farta e grisalha - um ar de pescador, só podia ser um pescador.

Sabia bem qual a sua missão. Não era a primeira vez que a desempenhava, nem era de longe a sua preferida. Mas fazia parte da vida, do eterno jogo de equilibrio entre todas as coisas à face da terra, um equilibrio entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre o estar ali, daquele lado da margem do rio... ou do outro lado do rio, junto da multidão.

Tudo tinha o seu tempo... e ele já tivera o seu tempo, o tempo em que vivera na outra margem do rio. Agora, muito tempo volvido... mudara de margem... e tinha a mais penosa das tarefas entre mãos.

Preferia - oh, como preferia - poder simplesmente caminhar entre eles, distribuindo amendoins e sorrisos, ajudando discretamente nos pequenos percalços das vidas diárias... mas naquele momento, a tarefa era outra.

Três... dois...

Algures por entre a multidão, o rosto da fotografia não sabia ainda - como poderia ? - o quão estava perto do fim...

Se lhe fosse permitido adivinhar o futuro, talvez tivesse atribuido um outro significado aquele ardor incomodativo no peito, aquele zumbir nos ouvidos, às tonturas passageiras do dia anterior. Mas o futuro não se adivinha, espera-se. E ele chega de mansinho, inexorável. E para o rosto da fotografia, a última badalada da meia noite coincidiria com o momento fatal. O coração pararia, o mundo rodopiaria diante dos olhos... e ele cairia anónimo no chão, sem ninguém reparar. Os olhos estariam colados ao fogo de artificio, os gritos de alegria encheriam os ares e ninguém prestaria atenção ao vulto moribundo sobre as pedras da calçada. Nem tão pouco reparariam quando o homem da ponte se aproximasse e lhe desse a mão, o segurasse e uma névoa azulada se desprendesse dele e se elevasse nos ares.

Não, ninguém repararia, certamente.

Um... Feliz ano novo...

Um estrondo imenso de mil foguetes encheu os céus, pintando a noite escura de mil cores. O frio desaparecera, o vento dera tréguas, um segundo de magia prolongava-se nos rostos felizes da multidão; beijos, muitos beijos, abraços, gritos, saltos esfusiantes de alegria. Se a felicidade dependesse de tão pequeno fragmento de tempo... sim, certamente que o novo ano seria o mais feliz de todos.

Com um gesto vagaroso, voltou a guardar a fotografia no bolso.

Correndo o risco de desagradar a quem o incubira da missão... já decidira.

Soltou a amurada e continuou a sua caminhada, ao longo da ponte, afastando-se da multidão. Afinal de contas, que mal poderia vir ao mundo... se adiasse aquela missão por umas horas, um dia até? Ninguém merecia morrer na última badalada da meia noite, pois não? Seria uma amarga ironia, que o principio de algo tão esperançoso como um novo ano tivesse que coincidir com as lágrimas de alguém.

Ergueu de soslaio os olhos ao alto, num silencioso pedido de compreensão.

- Eu sei,eu sei - murmurou entre dentes - sou um sentimentalista... mas Tu já sabias isso, quando me contrataste...