quarta-feira, 23 de março de 2011

Uma história invulgar


Primeiro acto

Senhoras e senhores, meninas e meninos…. Vou contar-vos a história de Margarida e Teodoro, duas personagens vulgares como tantas outras… e de como o destino ( à falta de melhor nome ) os escolheu como protagonistas de uma história no mínimo… invulgar.

Margarida era uma garota de tranças, irrequieta e pouco dada à obediência. Dividia um amor incondicional entre o seu estojo de pintura – oferta da avó – e o cão Napoleão, este sim, nada irrequieto e bastante amigo de longas e bocejantes sonecas, enroscado aos pés da dona. Na escola, era conhecida entre os professores como a “Mordillo”, uma alusão ao célebre cartonista.. e que a acompanhava desde o dia em que pintara uma caricatura de todos os professores da turma, no pátio branco da escola. A pintura foi apagada… entre gargalhadas, assobios e um lamento do professor de desenho, que ainda tentou interceder por ela.

Teodoro frequentava outra escola, outro bairro, outra cidade.

Escrevia nas paredes como quem escreve num diário – poemas, divagações, por vezes pequenas histórias. Não era muito popular entre as raparigas, tampouco o primeiro a ser escolhido para os jogos de rapazes. Mas era um ás naqueles saltos das aulas de ginástica, e provocava sempre sorrisos entre os amigos quando dizia: “ quando eu tiver um animal de estimação, será um castor, ou um esquilo. E chamar-se-á Martinho”.

Conheceram-se numa daquelas coincidências banais – uma visita de estudo, um intercâmbio de alunos entre as duas escolas.

Margarida acabara de descer do autocarro e observava a parede branca de um edifício abandonado, mesmo em frente ao portão da escola. Chamou-lhe a atenção um conjunto de linhas – qual carreiro de formigas – que preenchia a parte inferior do mesmo.

Observou com mais atenção – frases? Um jornal de parede?

Mordida pela curiosidade, galgou a rua e acercou-se do edifício, acompanhada por uma colega.

- O que é isto? A bíblia? Um testamento? – brincava a amiga.

Margarida devolveu-lhe o sorriso, lendo ao acaso algumas das linhas.

- São histórias, creio… alguém se deu ao trabalho de ir escrevendo aqui histórias… - e ia seguindo com o dedo o percurso sinuoso das palavras – e poemas… também tem poemas…

A amiga lançou-lhe um adeus e voltou para junto dos restantes colegas.

- Não te demores… a visita começa às onze… - ainda gritou

Margarida já não a ouviu. Tropeçara numa ilha, uma história de náufragos e de salvamentos, depois saltara para outra… e ainda outra. Num dos extremos da parede, reparou que a partir de uma dada altura, surgiam datas, como se o autor estivesse a datar os escritos – alguns bem recentes.

- Olha… esta é de hoje… - murmurou

“ De que valem os sonhos, de que vale toda a magia… se for escrita e não lida, se for guardada e não usada? Eu não quero ser copo de cristal para banquetes e cerimónias, quero ser usado, quero sentir e ser sentido, não quero ser só o confidente dos que me procuram…”

Lembrava-se de já ter escrito algo de semelhante… mas não numa parede.

Instintivamente, levou a mão ao bolso e retirou um lápis de cera azul – trazia sempre algum consigo.

Em três tempos, desenhou duas silhuetas, de mãos dadas, com uma linha de horizonte e algumas palmeiras em fundo. Depois acrescentou por baixo, em letras pequenas:

“ Não és o único… bem vindo à minha praia e aos meus sonhos.”

E afastou-se a correr, de encontro ao resto do grupo.

Pois, perguntarão vocês… mas isto não foi um encontro! É verdade, não foi um encontro real… mas foi assim que se iniciou o processo… quando uma das almas começou a procura da outra. E depois… bem… depois foi assim…

Algumas semanas depois, ocorreu uma nova visita, no seguimento do mesmo intercâmbio; a escola previamente visitada retribuía agora a visita, levando alguns alunos para participar numa série de actividades relativas à preservação do ambiente.

Teodoro, claro… fazia parte da comitiva, como podem imaginar.

E foi naquele final de tarde chuvoso, após a projecção de um filme sobre a extinção dos habitats… que algo aconteceu às nossas duas personagens.

No âmbito de um projecto escolar, a turma de Margarida fora encarregue de pintar um painel alusivo ao ambiente, com textos e imagens, para posteriormente ser exposto numa feira escolar. E Margarida, muito naturalmente… fora a escolhida para desenhar a imagem de fundo, sobre a qual os colegas teriam que redigir algumas frases relativas ao tema.

E Margarida… pintou.

Imersa nos seus pensamentos, alheia a tudo o que a rodeava… pintava, misturando as tintas de spray com traços nervosos a cera, a carvão, pinceladas de guache, uma mescla improvável de tudo o que a mão alcançava.

Pintava… uma queda de água.

Em sonhos… conhecia aquele lugar como a palma das suas mãos. Um jorro de água cristalina a brotar das pedras, galgando a muralha de pedra e projectando-se no vazio, para se desfazer em espuma alguns metros abaixo, numa pequena lagoa de águas revoltas, ladeada de nenúfares e ervas altas.

E no alto, bem no ponto mais alto, uma enorme laje, como se a natureza houvesse escolhido aquele local como um pequeno santuário, um éden esquecido no meio dos campos, só acessível em sonhos.

Teodoro permanecia imóvel, contemplando simplesmente o enorme mural, o azul cheio de espuma brilhante a entrar-lhe pelos olhos.

Sem saber como, sentia o rosto molhado de espuma.

Margarida, indiferente à presença de todos os visitantes, continuava a pintar, afastando-se compassadamente para – ao de longe – conseguir abarcar uma melhor visão do conjunto.

- Eu já sonhei com esse lugar… - murmurou baixinho Teodoro.

E foi então que talvez algo verdadeiramente tenha acontecido.

Como poderia Margarida ter ouvido tais palavras, pouco mais que um murmúrio confesso, no meio da algazarra dos muitos alunos, de ambas as escolas, que se acotovelavam para espreitar o enorme mural?

Mas… ouviu-as.

Não foi preciso procurar muito.

A muitos metros de distância, Teodoro engoliu em seco. Sem saber bem o como ou porquê, teve a certeza que o seu desabafo – na forma de um murmúrio – fora ouvido… e percebeu, num instante que teve o sabor de uma eternidade, que acabara de encontrar a autora da estranha pintura sobre o seu mural, com aquela frase “ Bem vindo á minha praia e aos meus sonhos”.

Sim, é verdade… foi assim que as nossas duas personagens deste conto se conheceram… mas… não se levantem ainda, a história ainda não terminou… não querem saber o que aconteceu a seguir?






5 comentários:

  1. Mais uma história que não me deixa parar de ler a não ser no fim. Indentifico-me com esta forma de passar para a escrita o omaginário.

    Continue sempre a encantar-nos com a sua escrita.

    Paula

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  2. És um artista da escrita...
    Parabéns!

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  3. Eu quero! Estou a adorar!

    Concordo contigo quando dizes "(...) não foi um encontro real… mas foi assim que se iniciou o processo… quando uma das almas começou a procura da outra." Para mim na vida ral também é assim que funciona. Sou uma romântica. :P

    Beijinhos

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  4. Ah, amigos... a vida também funciona assim em actos, não vos parece?

    Um grande abraço...

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  5. Não canso-me de ler....adoro..adoro...adoro.

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