quinta-feira, 3 de março de 2011

I wish you were here


“ I wish you were here “

Assim cantavam os Pink Floyd – pensou – num tempo já distante em que algumas canções eram mais que canções, eram bandeiras.

Rodou com prazer o botão do volume e o auto-rádio dedilhou os acordes inconfundíveis daquela viola, rasgando o silêncio primaveril.

Estava sozinho.

Oxalá tu pudesses estar aqui… cantava o vocalista, naquela voz rouca que fora ficando mais rouca, com o passar dos anos.

Olhou em redor; uma vastidão de silêncio, águas calmas e margens verdes cobertas de malmequeres brancos e amarelos, bandos de garças e cegonhas, pardais fugidios e nuvens brancas longínquas.

Pisou o tapete musgoso, deixando abertas as portas do automóvel – havia que soltar a música, sentir o vento no rosto, esticar os braços.

Por vezes, os passos sem rumo levam-nos a insuspeitos paraísos. Fora o que lhe acabara de suceder, ao decidir naquele passeio matinal virar à direita num cruzamento da estrada onde sempre virara à esquerda. E um gesto tão simples, num cruzamento que conhecia há mais de vinte anos… levara-o a um local desconhecido, simultaneamente tão perto e tão longe da civilização, sereno e pejado de pássaros em voos tranquilos.

Oxalá tu pudesses estar aqui… repetia o refrão… percorrendo o mesmo velho chão… o que encontramos? … os mesmos velhos medos…

Running over the same old ground.
What have you found? The same old fears.

Era verdade.

Os mesmos percursos só podiam originar os mesmos destinos. Como esperar coisas novas dos dias, continuando sempre a realizar as mesmas acções? Uma simples decisão, o virar errado do volante, um novo caminho, um novo destino. E como imaginar que aquele local pacífico se encontrava ali bem perto… ao alcance dos dedos… sem nunca o ter descoberto?

Uma garça mais afoita planou a curta distância, talvez curiosa pela inusitada presença.

A poucos metros, um “escorrega”; talvez que durante o verão – quem sabe até antes – aquele local fosse utilizado como praia, parque de merendas ou retiro de pescadores. Talvez que alguém se tivesse lembrado de ali montar aquela estrutura para entreter a pequenada. O certo é que aquela silhueta colorida, habitualmente associada aos risos e travessuras das crianças… parecia estranhamente deslocada, envolta num silêncio que não lhe pertencia.

Memórias de outros tempos… como aromas de infância; sim, era isso, o passado assemelhava-se a um aroma, a uma fragrância… algo de etéreo, não palpável… mas vivo. Tal como aquele “escorrega”, ali isolado numa paisagem azul.

Por vezes – pensou – é necessário reencontrar a personagem fugidia que se esconde cá dentro… conseguir chegar à fala com ela, perguntar-lhe os seus mais secretos desejos.

Por vezes, o “ Oxalá tu pudesses estar aqui “ deveria ser um convite para essa personagem, para esse outro lado do eu mesmo, aquele ser com que só conseguimos falar quando nos esvaziamos de todos os outros, de todas as personagens que nos cercam.

Por vezes… faz falta deixar de viver a vida dos outros.

Acercou-se do “escorrega”. A madeira ressequida pelo sol tornara-se áspera, a plataforma cor-de-laranja por onde as crianças desciam estaria até necessitada de algum tipo de produto, para evitar fissuras.

Subiu os estreitos degraus e sentou-se na rampa de partida, como se ainda tivesse dez anos.

Há muito, muito tempo… que não descia por um escorrega.

A voz interior que naquele dia teimava em se fazer ouvir sussurrou-lhe aos ouvidos:

- A vida é feita destes pequenos momentos, acredita… deixa-te ir…

Olhou em redor.

O automóvel continuava testemunha, as portas abertas.

Os pássaros continuavam imperturbáveis os seus voos, o vento não cessara de agitar as pétalas dos malmequeres.

Sim… na verdade, a vida era feita daqueles pequenos momentos.

Empurrou-se a si mesmo até ao extremo da plataforma… e voltou a ter dez anos, num qualquer parque de brincadeiras…

10 comentários:

  1. Faz bem à nossa criança interior de vez em quando fazer algo que ela gosta. Como por exemplo, descer um escorrega. ;)
    Gostei da reflexão que a história trás.

    Beijinhos

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  2. estou andando à esquerda do meu caminho e descobrindo pedras preciosas ainda brutas..
    vale a pena..

    "Por vezes, os passos sem rumo levam-nos a insuspeitos paraísos."

    bjs.Sol

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  3. Se percorrermos todos os dias os mesmos caminhos, encontramos sempre as mesmas pessoas e até nos esquecemos de contemplar as paisagens, por serem tão rotineiros os nossos trajectos.
    Ousar, arriscar, seguir em frente impõe-se, nunca se sabe se ao virar da esquina se encontra algo ou alguém que nos faça acreditar que há "hoje" e se possa substituir "I wish you were here" por "I`m here".
    E entre o aqui e o agora, passei por aqui e deixo-te um beijo.

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  4. "Uma simples decisão, o virar errado do volante, um novo caminho, um novo destino..." - tenho a certeza que se voltares a escrever e a refletir nesta frase, não colocas a palavra "errado"...afinal, meu caro Rolando, constituiu este gesto a coisa mais acertada do momento!! Beijinho.

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  5. E como gostamos sempre de partilhar esses momentos que nos preenchem... Wish you were here!

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  6. Há muito, muito tempo, era eu uma criança que brincava....

    Porque às vezes precisamos cruzar-nos com o passado para sorrir de novo ao presente.

    Beijinho

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  7. Rolando

    Esses momentos trazem uma brisa fresca à vida!

    bjos
    Anne

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  8. Estou completamente de acordo com dida, , palavra por palavra é a minha opinião. Hum como foi bom recordar "Pink Floyd " já lá vão muitos anos em que estava a ouvir as belas canções deles, bem acompanhada, junto ao mar. Continuo bem acompanhada e a ouvir essas e outras canções junto ao mar. bj

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  9. Cancão que tantos já embalou!
    Apurar nossos sentidos e ouvir a voz interior é muito saudável.
    Um escorregador ou apenas aquele som bem alto de quando ouvíamos bem ,mas queríamos sempre sempre muito mais rs
    Oxalá seja possível outas cançoes e outros escorregas .
    um grande abraço Rolando

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  10. Rolando,

    Uma reflexão faz tão bem à alma.

    Adorei.
    Um abraço, amigo.

    Gislene.

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