Quase, quase… um primeiro dia de verão.
Que ainda não o era.
A primavera tardia transformara-se num tempo de chuvas, intercalando pingos de Inverno e as cores fortes do verão, secando as espigas de trigo e alourando os campos.
Princípios de Junho. Em breve – muito em breve – o estio seco cobriria a planície de videiras multicores, fardos de palha e cantos de ceifeiras. O céu ficaria mais azul e sem nuvens, as crias dos pássaros abandonariam os ninhos, os ribeiros murchariam sem água e as papoilas seriam substituídas por malmequeres amarelos.
No alto dos eucaliptos, as cegonhas mais jovens aprenderiam a voar, treinando a fantástica viagem de regresso a africa.
Ou pelo menos… quase todas.
Leopoldo Malaquias era uma dessas cegonhas que, pelos ossos do ofício, não poderia acompanhar a família no regresso aos planaltos quentes de africa. E isto porque a veterana cegonha Malaquias tinha uma das tais profissões especiais, que não se compadecem com o rodar das estações.
Leopoldo Malaquias era… um entregador.
E se os meus amigos estão pensando com um sorriso naquela imagem tão familiar de uma cegonha carregando um embrulho de pano, seguro no bico… com uma criança lá dentro…pois é verdade, não se enganaram por completo. Mas…
Bem… existe sempre um “mas”, não é verdade? Ou vocês sempre acreditaram que as cegonhas só transportavam… bebés? Não, claro que não…. Seria um desperdício enorme de talento, não vos parece?
Pois é verdade, Leopoldo Malaquias era um desses anónimos entregadores, um estafeta incansável e competente, trilhando os cinco continentes e podendo gabar-se – sem falsa modéstia – de nunca ter extraviado uma encomenda. Não, nunca.
Mas também é verdade que – apesar dos muitos anos que já levava de profissão – nunca fora solicitado para entregar uma encomenda… como aquela.
Abriu e fechou o longo bico, divertido. Os humanos – sim, quem mais senão os humanos para estabelecer aquele laço tão especial com as cegonhas – ainda conseguiam, de tempos a tempos… surpreendê-lo. Lembrava-se de já ter transportado bebés – muitos – entre continentes, alguns até adoptados, flores, pássaros exóticos, até alianças de ouro… e uma bicicleta; entregas estranhas, porventura excêntricas… mas certamente com significado especial para quem as enviava… e sobretudo para quem as recebia.
Muito raramente, a cegonha Leopoldo pernoitava no local de destino, após efectuar a entrega. No princípio… adorava espreitar pelas janelas embaciadas, ouvir os gritos de alegria quando o destinatário se apercebia que chegara a sua tão preciosa encomenda. Com o tempo, a monotonia vencera a curiosidade e limitava-se a deixar o precioso embrulho, pousado num beiral ou junto da chaminé… e retornar a casa, para junto da sua própria família. Sim… apesar dos humanos nem se aperceberem de tal…. Ela também tinha uma família.
Ajeitou cuidadosamente a sua encomenda, prendeu os cordões que fechavam o embrulho de pano e aprontou-se para partir.
Seria a primeira vez que iria entregar uma pequena caixinha de madeira contendo… sementes. Sim, isso mesmo, perceberam bem… sementes.
A história era longa, e nem lhe competia a ele, Leopoldo Malaquias, reproduzi-la. Sabia simplesmente que o destinatário da encomenda era uma mulher, de meia idade, com filhos, com uma história de vida complicada. Sabia também que o remetente da encomenda era um homem, também com filhos, apesar de não lhe conhecer o nome ou a origem. E sabia também que a caixinha de madeira continha seis sementes, acompanhadas de um papel dobrado, contendo talvez a explicação de tão estranha entrega.
E na verdade, sabia ainda outra coisa. Que a mulher a quem se destinava a encomenda… não podia ter mais filhos, por motivos que certamente não eram do seu pelouro.
Ensaiou um bater de asas, reviu mentalmente todos os procedimentos… antes de se lançar ao voo. A viagem era longa, um oceano para atravessar, era imperioso não esquecer nada.
Três, quatro, pronto… talvez cinco vezes. Mas para quê resistir mais à tentação? Sabia perfeitamente que mais tarde ou mais cedo abriria a pequena caixa, roído pela curiosidade. O que se encontraria escrito no pequeno papel?
Com um gesto certeiro do longo bico, retirou o laço que segurava o papel dobrado da embalagem. Este tombou sobre o terraço de tijolo, desdobrando-se perante a sua curiosidade. Finalmente podia ler.
" Três destas sementes são tuas, as outras minhas. São iguais, impossível distingui-las. A todas elas daremos água, afastaremos os predadores e cantaremos canções de embalar. Crescerão num canteiro a que chamaremos de lar e quando elas próprias gerarem sementes… fechar-se-á o ciclo do mais improvável dos amores que este mundo já conheceu. E assim será. "
A cegonha Malaquias passou o bico pelas penas brancas, num gesto inconsciente de meditação. Não compreendera em absoluto o conteúdo da estranha mensagem… mas verdade seja dita, os humanos tinham esse raro condão de escrever coisas estranhas, ilógicas, irracionais… regadas por aquela palavra "amor" que teimavam em utilizar de modo quase absurdo.
Sementes? O que quereriam os humanos dizer com… sementes?
Não, decididamente… um mundo demasiado estranho, o dos humanos.
Bateu as asas e lançou-se nos ares. Mais uma entrega.
Seis sementes, de enigmático significado.
Um homem, uma mulher, seis sementes.
Ser cegonha, viver a vida de uma cegonha… era na verdade, incomparavelmente mais simples…