domingo, 5 de junho de 2011

Ao acordar...


Esfregou os olhos na penumbra, estranhando todo aquele silêncio.

Será assim tão tarde? – pensou – ou alguém se esqueceu de me chamar?

Um bocejo, um esticão preguiçoso dos braços.

Em breve, recomeçaria a rotina diária; levantar, lavar a cara, vestir, beber um copo de leite, talvez acompanhado de uma torrada ou de uma fatia de queijo, apanhar à pressa os livros e cadernos, enfiar tudo na mochila, correr até à esquina, juntar-se ao Zé Manel e rumar à escola, para mais um dia de aventuras e desventuras.

- Mãe… - gritou, mesmo de olhos fechados – estou atrasado?

Ninguém lhe respondeu. Os primeiros minutos do dia correspondiam invariavelmente a uma azáfama de tarefas apressadas, a mãe tentando arranjar-se e a gritar em simultâneo, pela porta entreaberta do quarto – Luís, não te esqueças de apanhar o dinheiro para a senha do almoço… vai buscar o equipamento de ginástica lavado, esse que tens aí está uma miséria…

Aos solavancos, ele lá cumpria o solicitado, entre duas mordidelas na torrada e um piscar de olhos à televisão.

- Mãe… - lá foi repetindo – estou atrasado?

Ficou com a sensação de ter ouvido ao longe um gotejar abafado de palavras; talvez a mãe estivesse a falar ao telemóvel e por isso não lhe pudesse responder. A mãe dependia de mil telefonemas, era esse o seu trabalho.

Um dia dissera-lhe:

- Mãe… são quase dez da noite… e ainda estão a telefonar-te do emprego?

E enquanto encolhia os ombros num gesto impotente, a mãe lá lhe foi explicando que secretariar a direcção de uma empresa era mesmo assim, por vezes surgiam assuntos fora de horas, reuniões para marcar ou desmarcar, pedidos de contactos, pontos de situação para assuntos urgentes, enfim… um rol de imprevistos que nada tinha a ver com o horário das nove às sete da maioria das pessoas.

Em contrapartida, podia gabar-se de a sua própria vida ser tranquila, rotineira até; igual à de qualquer jovem de dezasseis anos, os dias na escola, os amigos, os namoros, a folia dos fins de semana, enfim… o normal, simplesmente o normal.

- Mãe… - e levantou um pouco mais o tom de voz – que horas são? Estou atrasado?

Um jorro súbito de luz irrompeu pelo quarto.

Abriu a muito custo os olhos, as mãos trémulas a proteger as pálpebras de tão ofuscante claridade.

- Mãe? – balbuciou.

- Senhor Luís… ora viva, como vai isso? Então, hoje está preguiçoso, é? Olhe que todos já estão a tomar o pequeno almoço, só falta você… quer ajuda para se levantar?

- M..Mãe? Mãe?

A mulher de branco exibiu um sorriso compreensivo.

- Rita, senhor Luís, sou a Rita, então não me está a reconhecer? A enfermeira Rita… vá… quer que o ajude a levantar-se?

Rita? Enfermeira Rita? Sim, talvez… uma leve memória… nada de concreto, mas o rosto era-lhe familiar, sim…. Só não sabia de onde…

- Você… - murmurou - … você não é a minha mãe… onde está a minha mãe?

A enfermeira Rita puxou os lençóis, ajudando-o a erguer-se lentamente.

- Oh, senhor Luís… pois não, claro que não sou a sua mãe… daqui a pouquinho, vai ver… já se vai recordar outra vez… eu sou a enfermeira Rita, não se lembra? Aqui da clínica… então o senhor Luís já não se lembra de quantos anos tem? A sua mãe já morreu… há muito tempo… e o senhor agora vive aqui connosco… e nós gostamos muito de o ter aqui… vá, apoie-se aqui no meu braço, isso… vá, um pouco mais de força… isso mesmo… agora a outra perna…

Com paciência infinita, esperou que ele se equilibrasse.

Luís Ezequiel Moniz Monteiro, 81 anos de idade… sindromas de Parkinson e Alzheimer.

Um amanhecer sempre diferente, retorcido pelas memórias de um passado que já não existia mais, senão nas suas lembranças.

A realidade – conforme a enfermeira Rita presenciava todos os dias – era algo de muito subjectivo, para a vintena de doentes internados naquela clínica; cada um tinha a sua própria realidade, o seu próprio tempo presente. E ela, Rita, vestia todas as manhãs mil papéis, desde a mãe imaginária do senhor Luís a tantos outros, personagens fictícias de um tempo presente mas bem reais… para todos aqueles que ela ajudava a erguer da cama, a vestir, a alimentar-se, a deitar.

- M…Mãe… você pode ir perguntar à minha mãe… se eu estou atrasado?

5 comentários:

  1. Sempre surpreeendente... e bem real!

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  2. Um retrato perfeito de uma realidade que gostaríamos que fosse só imaginação.

    Beijos
    Manu

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  3. Maravilhoso, Rolando! Não, eu diria mais que isso. Seu conto é arrebatador!

    Me fez lembrar de um trecho de Terra Sonâmbula, de Mia Cout, que diz assim:

    "Quero pôr os tempos,
    em sua mansa ordem,
    conforme esperas e sofrências.
    Mas as lembranças desobedecem,
    entre a vontade de serem nada
    e o gosto de me roubarem do presente.
    Acendo a estória, me apago a mim. "


    Grande beijo,
    Inês

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  4. Muito bom, mesmo.
    Cheguei aqui vinda do Isabelicess depois de te teres juntado ao gang de bloggers que se decidiu a escrever os bloguisódios.
    Vou voltar mais vezes.

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  5. Que dizer!

    Tudo aquilo que possa escrever ficará sempre muito aquém do que nos fazes sentir.

    Tu falas de vidas e de vivências e levas-nos sempre a sair da nossa "vidinha" e esprair o olhar.
    A minha primeira reação ao ler este post foi ainda bem que existem Ritas senão, a realidade de tantos podia ser mais real sem dúvida mas se calhar bem mais cruel

    Um abraço e mais uma vez obrigado pela participação no Blogusódio. Adorei!!

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