- Mãe… sabes? O professor não gosta de mim…
A mãe pousou a colher de madeira no fogão e olhou de relance para o pequeno Miguelito, queixo enterrado nas mãos e expressão infeliz.
- Ora essa, Miguelito, que coisa para se dizer… isso nem parece teu…
O filho torceu o nariz, afastou os cadernos para o lado e pôs-se a rodopiar a esferográfica como se esta fosse um pião.
- Mas é verdade, mãe… o professor de Integração, é desse que estou a falar, tu conheces, mora ali ao pé do teu trabalho…
- Eu sei quem é o professor de Integração, Miguelito… e olha que é uma excelente criatura… Amândio, ou Amaro….
- Amadeu – lá corrigiu o Miguelito – trocas sempre os nomes – o senhor Amândio é o porteiro da escola…
- Ah, sim… claro, claro, que cabeça a minha… professor Amadeu, é isso mesmo…
Ela levou a colher de madeira à boca – talvez mais um pouco de sal, sim - e espiou o relógio. O tempo voava, as lides domésticas requeriam tempo, muito tempo… e tempo era precisamente aquilo que não tinha.
- Já preparaste a mochila? Não te esqueceste de nada? Hoje não é dia de ginástica? Já guardaste os ténis?
O Miguelito lá acenou que sim com a cabeça, continuando a tentar transformar a esferográfica num pião.
A mãe deixou-o em silêncio uns segundos, esperando o ferver da sopa; aproveitou para colocar os pratos, os copos, talheres – mais uma refeição à pressa – apanhar duas peças de fruta e um pequeno pudim.
Ser pai e mãe em simultâneo não era fácil; Não impossível… mas nada fácil mesmo. Por sorte, o horário escolar encaixara sem grande ginástica no seu, permitindo até por vezes almoçarem juntos, como naquele caso. Claro que tudo tinha que ser feito em corrida, claro que os esquecimentos aconteciam. Na semana anterior, levara por engano o lanche do filho para o banco, esquecera um dossier de serviço na reunião de pais e inutilizara por completo uma camisa branca ao deixar cair sobre ela os pincéis do Miguelito, entretido no trabalho de geografia.
Mas a vida também era feita de pequenas peripécias, e nem todas ruins.
Por coincidência, aquele mesmo professor – Amaro, Amândio, Amadeu, trocaria sempre os nomes – fora o protagonista.
Estacionara o automóvel no local de sempre. E como habitualmente, sempre à pressa, caminhando a passo largo até ao banco, ao mesmo tempo que bebia o café. E vai daí… uma mão segurando o copo de plástico, a outra tentando não deixar cair os dossiers… como reparar no professor, imóvel defronte da porta de casa?
O infeliz procurava lembrar-se se guardara as chaves de casa, quando sentiu o embate.
Primeiro o embate, logo depois o café bem quente projectado sobre a camisa, a gravata a mudar subitamente de cor.
- Oh… perdão, perdão, perdão… - e a mãe do Miguelito desfazia-se em desculpas – não sei como aconteceu, professor… a minha cabeça…
Ele abria e fechava a boca, sem saber se rir ou protestar. Mas antes de ter tempo para algo mais, já ela puxara de um lenço e zás… vá de atacar a gigantesca nódoa, num gesto mais simbólico que útil – desculpe-me… ia completamente distraída…
Passaram-se alguns segundos – pelo menos assim lhe pareceu – e quando ergueu os olhos, ainda agarrada à camisa do professor, encontrou-o com um sorriso desarmante.
- Anh… desculpe… Mariana… dona Mariana, creio…
Ela abanou a cabeça, concordando – sim, sim… a mãe do Miguel…
Ele continuava a rir.
- Dona Mariana… já me pode largar… - e com o dedo apontava para cima, algures para uma das varandas do primeiro andar, onde outra mulher seguia atentamente o desenrolar dos acontecimentos - … ou a minha mulher ainda pensa que nós temos um caso…
Dona Mariana, mãe do Miguelito, empregada bancária, dona de casa e levemente distraída… ergueu devagar o olhar… viu a mulher debruçada da amurada, os olhos sorridentes do professor Amadeu… e soltou-o de repente, como se toda a vergonha do mundo lhe tivesse descido sobre a cabeça. Sim… por favor… que a terra se abrisse e a engolisse… depressa, depressa, depressa. Que vergonha…
Deu consigo a sorrir – a sopa já fervia – só de recordar o incidente embaraçoso.
- Vá, Miguelito… vamos despachar-nos, o almoço está pronto…
Ele lá foi arrumando lentamente os cadernos, o estojo dos lápis e a inseparável playstation, enquanto a mãe despejava o caldo fervente sobre os pratos.
- E agora… já me podes então contar essa história do professor Amaro não gostar de ti…
- Amadeu, mãe… Amadeu. O professor chama-se Amadeu…
- Ah, sim… claro, o professor Amadeu. Ora então conta lá as tuas desventuras, meu filho…
Miguelito olhou para a mãe, sem perceber ao certo se a ironia era sentida ou mera brincadeira.
- Ele deitou fora um trabalho que eu fiz… na sala…
A mãe empertigou-se toda, sem acreditar muito bem no que acabara de ouvir.
- O quê? Não devo ter percebido bem. O professor de Integração deitou fora um trabalho… um trabalho que fizeste na aula, foi isso?
Miguelito acenou que sim, depois que não.
- Mais ou menos… ele deitou-o para a água.
A mãe ficou a olhar para ele, boquiaberta. Miguelito sempre tivera o condão de a surpreender com tiradas inesperadas… mas desta feita, esmerara-se, sem dúvida.
Sentou-se, a situação requeria um pouco de calma. Certamente existiria uma explicação plausível para tudo… até porque a imaginação fértil do pequeno Miguel era bastante avançada… tendo em conta os seus onze anos de idade.
- Muito bem, muito bem… prometo ficar caladinha… não te interrompo… e tu contas-me toda essa história, muito bem contadinha, pode ser? Com vírgulas e tudo, mas mesmo tudo. Pode ser?
Ele atacou um minúsculo gole de sopa, queimou-se, protestou.
E lá contou a sua história.
- Pois olha… foi assim… logo de manhã, quando entrámos, ele pediu-nos para tirar uma folha do dossier… e disse para escrevermos um texto sobre uma frase que ele iria colocar no quadro. É esquisito… ele não costuma fazer nada destas coisas, quer sempre ver os nossos cadernos… mas desta vez até o Zé Luis ficou sério, ninguém percebeu muito bem.
E como demorasse a retomar a história, a mãe lá o apressou.
- Bem… até aí percebi. E o que escreveu ele no quadro?
O Miguelito fez uma expressão de estranheza.
- Uma coisa esquisita, já te disse. “ Eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto.” Foi só isto. E disse que tínhamos meia hora para escrever o que quiséssemos sobre aquela frase.
A mãe conteve um sorriso. A disciplina de Integração do Miguelito sempre fora um manancial de surpresas, desde que o professor Amadeu a assumira na escola. E a pretexto de um currículo onde seria suposto falar de cidadania, ética, cultura cívica… surgiam por vezes aulas no mínimo… inesperadas.
Sim… talvez fosse essa a palavra adequada para descrever o professor Amadeu.
Uma personagem… inesperada.
- E então? O que escreveste tu sobre a frase do quadro? Estavas inspirado?
O Miguelito fez que não.
- Não… ninguém sabia o que havia de escrever, mãe… ele até nos deixou conversar uns com os outros, imagina… e ficou sentado a olhar para nós e a sorrir… muito estranho, mãe, mesmo muito estranho… e nós escrevemos algumas coisas, a Maria Luísa escreveu a folha inteira, não sei como ela conseguiu… o Zé Luis só fez duas linhas…. Eu fiz metade da folha…
- Ah… muito bem, muito bem… então… e depois? O que aconteceu?
- Depois… o professor Amadeu pegou nas nossas folhas, leu-as todas baixinho e pediu para irmos com ele, precisava de nos mostrar uma coisa no pátio…
A sopa arrefecia, enquanto a mãe do Miguelito segurava a colher. Desta vez… a coisa prometia, sem dúvida.
- … e nós lá fomos, atrás dele . continuou – e a dona Matilde, a funcionária do primeiro piso, fez uma cara muito espantada, quando nos viu a passar no corredor… e imagina, mãe? Levou-nos até ao lago, aquele que tem a fonte…
- O lago? Aquele junto das árvores, no pátio da tua escola?
- Sim… esse mesmo. E depois… depois é que foi mesmo… muito estranho. Nem imaginas…
A mãe concordou com um movimento de cabeça. Pois não, não imaginava.
- Ele pegou em cada um dos nossos trabalhos… e começou a fazer… aqueles barquinhos de papel, como os que me ensinaste a fazer, lembras-te? Aqueles em que se dobra a folha várias vezes…
- Sim, sim… sei quais são… e depois? Vá, conta… e depois?
- Depois? Depois atirou-os à água, e disse para olharmos para eles. Oh mãe… ele atirou os nossos trabalhos à água, a sério, não estou a inventar…
- Anhhh… sei… claro que não estás a inventar… mas ele disse alguma coisa? Disse porque motivo os tinha lançado à água?
- Disse… mas ninguém percebeu nada. Nem eu.
A mãe fez-lhe sinal para que metesse mais uma colher à boca.
- Sim… mas tenta lembrar-te… o que disse ele?
O Miguelito esforçou-se por reproduzir a ideia, apesar de não se lembrar das palavras.
- … qualquer coisa sobre os barcos serem diferentes… apesar de feitos do mesmo papel, dobrados do mesmo modo… mas com diferentes coisas lá escritas…. oh, mãe… eu não percebi, a sério que não percebi…
A mãe sorria, cada vez mais interessada naquela aula … inesperada.
- E ainda te recordas da frase que ele escreveu no quadro?
- Claro que recordo, era tão esquisita… “ eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto”…o que achas que significa, mãe? Tu sabes?
A mãe continuava a sorrir-lhe. Aquele professor Amadeu…
- Talvez Miguelito, talvez… olha, já imaginaste… daqui a alguns anos, ou muitos anos… o que estarão fazendo todos os teus colegas da turma? Já imaginaste o que poderão ser… quando forem grandes… adultos?
Ele encolheu os ombros. Como adivinhar o futuro?
- Um daqueles barquinhos… poderá transformar-se num grande cientista…. Outro talvez num escritor famoso, outro ainda num atleta fantástico… ou quem sabe outro ainda num varredor de rua, no senhor do talho ou num arrumador de carros… já pensaste nisso?
Miguelito acenou um não indeciso com a cabeça.
- Sabes Miguelito… se o vento for forte… qual será o que ficará mais despenteado? O esperto… o inteligente… ou o culto?
O filho olhou para a mãe, encantado.
- Isso é uma adivinha, mãe?
- Não… diz lá… qual pensas que ficará mais despenteado?
Miguelito hesitou, sem saber muito bem como atacar o problema.
- Não sei… como posso saber?
A mãe passou-lhe uma peça de fruta para junto do prato.
- É simples, Miguelito… ficará mais despenteado… aquele que não estiver usando um chapéu, não achas?
O filho abriu a boca, num protesto inútil.
- Mas… tu não falaste em chapéus… assim não vale… porque não falaste em chapéus?
A mãe levantou-se, esvaziando os pratos sobre o lava-louças.
- Ora, Miguelito… porque há coisas que não devem ser ditas…. Devem ser descobertas… e suspeito…. Suspeito vagamente que talvez fosse isso que o professor Amadeu… enfim…
Olhou para o relógio de parede e deu um salto.
- Miguelito…. Ai… ai… olha as horas, olha as horas…. Estamos atrasados, corre, corre, vai lavar os dentes, anda, anda, mexe-te… senão sou despedida…
Gostei muito desta história.
ResponderEliminarHoje, li, ROLANDO !
ResponderEliminarPara sua informação : NÃO USO CHAPÉU !
RsRsRs...
Um abraço e felicitações pela AULA.
Muito boa reflexão. Se pudessem existir em todas as turmas um professor assim, haveria alunos mais preparados para a vida.
ResponderEliminarBeijinhos
adorei :o
ResponderEliminarEu não irei ficar despenteado, mesmo não usando chapéu, pois sou careca.
ResponderEliminarParabéns por este texto que é uma lição de vida.
Rolando,
ResponderEliminarHoje, ao ler teu texto, senti-me tão encantada que não sei se comento primeiro "Uma Aula... inesperada" ou se falo da incrível capacidade que tens de nos tornar presos a tua história, do começo ao fim. Sabes aquele livro gostoso que não queres largar, pois é assim que eu me sinto, quando estou a ler o que escreves!? Parabéns!
Olá
ResponderEliminarE porque há coisas que não devem ser ditas…. Devem ser descobertas, eu não vou alongar-me.
Pelo que vi e li é um homem culto inteligente e porventura esperto...
Vou voltar mais vezes!
Abraço
Não basta dar o peixe, o mais importante é ensinar a pescar.
ResponderEliminarCom a minha cana, hoje pesquei umas coisas interessantes por aqui
Beijos
Manu
Oi Rolando
ResponderEliminarGosto de tudo que se relaciona com escola, sala de aula ,professor .
Lembro dos livros, do recreio, dos momentos livres , daquele arrepio de medo na hora das provas.E também de um certo tempo lá no quadro de giz - de professorinha .
O conto remete-me a essas lembranças.
A reprodução da ideia como "qualquer coisa sobre os barcos serem diferentes… " e feitos do mesmo papel me faz refletir.Somos assim ,não e? feitos da mesma espécie e reproduzindo barcos tão diferentes! uns transatlânticos outros jangadas apenas.
Importâncias à medida.
Fez-me bem o conto, faz-me bem voce meu mestre!
abraço
Fantástico!
ResponderEliminarRolando
ResponderEliminarO Prof. Amadeu é dos meus! Belíssima história de um ensinar que proporcionou interação, autonomia e colaboração e, por consequência aprendizagens. Um aprender a LER. Lindo! Obrigada
bjos
Anne
LINDA História...
ResponderEliminarComo sería bom, que os Prof.Amadeu, se multriplicassem.
:-) BJS: